Artigo:Para onde vai a formação inicial de professores?

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Para onde vai a formação inicial de professores?

Manuela Esteves | Professora do Instituto de Educação e Dirigente sindical

Por que razão devem os professores já em exercício, profissionalizados, interessar-se pela formação inicial para a docência?

A formação inicial é um elemento fundamental para (i) a definição e a caracterização da profissão, (ii) a criação de uma cultura profissional comum entre os docentes, (iii) a estima social de que a profissão goza e (iv) a relação que se pretende, tão estreita quanto possível, entre as grandes finalidades e objetivos democratizadores da educação, por um lado, e a ação dos professores, por outro.

É em todos estes sentidos que defendemos que os professores já em exercício e as suas organizações representativas, nomeadamente os sindicatos, não podem alhear-se dos rumos que a formação vai tomando. Da sua promoção e desenvolvimento ou da sua degradação resultam consequências tanto para os profissionais atuais e futuros e o seu estatuto socioeconómico, como para os alunos e a qualidade do ensino que lhes é ministrado.

A constituição da docência enquanto profissão assenta num conjunto de pressupostos exigentes que permitem distinguir a mesma de um conjunto de outras atividades mais ou menos similares.

Para que uma qualquer atividade possa tornar-se uma profissão (no sentido que a sociologia dá a este conceito, um sentido bem mais restritivo que o atribuído pelo senso comum), é necessário que essa atividade, para além de socialmente útil e remunerada, preencha um conjunto determinado de condições. A formação é uma dessas condições: uma formação baseada num saber especializado adquirido sistematicamente mediante um longo processo de aprendizagem e renovado constantemente ao longo da carreira.

Em Portugal, foi apenas no século XIX que apareceram as primeiras escolas de formação de professores no reconhecimento de que, para se ser professor, não bastava apenas saber a matéria a ensinar e apresentá-la aos alunos. 

Hoje, a luta por uma formação profissional específica para a docência está (novamente) na ordem do dia, fruto da inércia e da incompetência de sucessivos governos e governantes que não quiseram impedir o fenómeno de falta de professores qualificados com que nos estamos a debater na corrente década. A solução mais fácil e facilitista passa, agora, por desvalorizar a necessidade de uma formação profissional inicial especializada e por tentar regressar à velha ideia de que a transmissão do conhecimento pelo professor é condição suficiente para que os alunos aprendam. Aliás, chega-se mesmo a querer “aligeirar” essa componente, atualmente designada como formação na área de docência, ou seja, o conjunto de conhecimentos que um professor deve, à partida, deter relativos aos conteúdos a ensinar.

Somos dos que prezam (e muito) o domínio de conhecimentos e saberes de que um professor necessita para poder ensinar, conhecimentos e saberes em constante renovação. Mas não confundimos a ação do professor com a simples transmissão magistral de tais conhecimentos e saberes. Ser professor não é declarar o que se sabe de forma desejavelmente atualizada e rigorosa, mas sim o ser capaz de levar outros, os alunos, a aprender. Todos os alunos. E nisto residem a especificidade da profissão docente, a necessidade de uma formação inicial especializada para o seu desempenho e a articulação entre componentes diversas, tal como os normativos em vigor as consagram (formação na área de docência; formação educacional geral; didáticas específicas; iniciação à prática profissional e prática de ensino supervisionada; formação cultural, social e ética).

É nesta ordem de ideias que recusamos que sejam recrutadas para a docência nos ensinos básico e secundário pessoas pelo simples facto de serem investigadoras ou terem concluído um qualquer mestrado ou doutoramento. Isso certamente atesta competências, mas não necessariamente competências docentes.

A formação profissional inicial sendo apenas um dos fatores de definição e afirmação da profissão, tem ainda o poder de intervir e ajudar a configurar todos os restantes fatores dessa definição. Os especialistas da sociologia das profissões coincidem em que as profissões se definem também pelos seguintes aspetos:

  • A vocação ou motivação, na medida em que a atividade não se guie apenas pela obtenção de uma remuneração, mas também por uma série de expetativas de conduta e valores que se vão reforçando com a formação e acabam por sobrepor-se às motivações extrínsecas (ausência de outras alternativas de emprego, necessidade de um rendimento, etc.);
  • A orientação do serviço, prestado em prol do bem comum, do desenvolvimento da sociedade em geral e daqueles a quem o profissional especificamente serve;
  • A organização, enquanto reconhecimento pela sociedade e pelos próprios praticantes de uma dada atividade, de uma identidade do grupo que os distingue de outros grupos e os leva a organizarem-se coletivamente, a desejar intervir nos mecanismos de acesso à profissão e a zelar pela qualidade do desempenho;
  • A autonomia na tomada de decisões, enquanto capacidade para fazer escolhas, definir o que é melhor para aqueles a quem servem e não se sujeitarem a juízos de leigos pouco ou nada informados sobre a sua ação, autonomia acompanhada da necessária responsabilidade pelas decisões tomadas.

Não é difícil deduzir, no caso dos professores, quanto a formação inicial, dependendo do modo como é pensada e concretizada, pode influir decisivamente sobre a motivação dos futuros profissionais, sobre os valores e princípios éticos que os norteiam, sobre o primado que atribuem aos interesses, necessidades e expetativas dos seus alunos e sobre a autonomia de que se sentem capazes para tomarem decisões.

A formação profissional inicial dos professores pode e deve conduzir à construção de uma cultura profissional comum do corpo docente, para lá da interpretação particular que cada um e cada uma possam fazer dos diversos aspetos dessa cultura e dos modos pessoais como pensam e desenvolvem a sua ação. Tal é condição de aspetos tão relevantes como o desenvolvimento do trabalho colaborativo e a facilitação da entrada na profissão dos novos professores.

O caminho de qualquer atividade no sentido da respetiva profissionalização não é fácil, nem linear, nem imune a retrocessos. É, de facto, de retrocessos que estamos agora a falar quando constatamos o teor das decisões políticas adotadas para tentar colmatar a falta de professores devidamente qualificados e a sobrecarga de trabalho imposta aos professores nas escolas para disfarçar o problema.

Ao refletir sobre a formação inicial, importa não esquecer que, a par da formação formal, há a considerar a formação não formal e a informal. A formação não formal designa aquelas aprendizagens que cada professor faz ao trabalhar com os alunos e com os pares, em espaços e tempos que não estavam previstos para a formação docente, mas que, entretanto, a produzem, de tal forma que alguns professores, exagerando, dizem que tudo o que sabem o aprenderam com os alunos e os colegas. A formação informal designa o património cultural de que cada um é portador por viver num dado tempo e numa dada sociedade, ter sido educado numa dada família e ter desenvolvido determinados interesses. Se adotarmos esta perspetiva abrangente de formação inicial, a formação formal, organizada em cursos, torna-se um objeto muito complexo quando se pretende integrar e potenciar as três vertentes.

O trajeto da formação inicial de professores em Portugal é já longo. Assinalamos como mudanças principais registadas desde o 25 de Abril, as seguintes:

  • A sucessiva elevação do nível académico da formação (diploma do magistério primário, bacharelato ou licenciatura, mestrado);
  • A ampliação das dimensões contempladas pela formação (incorporação de conhecimentos provenientes da investigação em ciências da educação; participação na organização da escola e na vida da comunidade; participação na política educativa), a par naturalmente ao primado dado ao trabalho com os alunos, em sala de aula;
  • A diversificação de modelos, métodos e técnicas de formação de acordo com as opções das diferentes instituições de ensino superior que ministram a formação.

Mediante este trajeto, nem sempre tão rápido quanto desejado, foi possível atingir níveis de profissionalização dos professores muito assinaláveis. A título de exemplo, enquanto em 1974 apenas cerca de 18% dos professores do CPES/ES eram profissionalizados, essa condição passou a ser a de mais de 90% dos professores dos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico e do ensino secundário em exercício no dobrar do milénio.

Todos sabemos quanto a profissionalização é condição necessária (ainda que não suficiente) para o acesso à carreira, com a inerente melhoria da situação remuneratória e maior garantia e estabilidade do emprego.

Olhando o presente e o futuro da formação inicial numa perspetiva qualitativa, há alguns problemas que merecem especial atenção se quisermos ter novos professores cada vez mais qualificados e competentes.

Mencionamos, em primeiro lugar, porque lhe atribuímos a máxima importância, o papel da prática pedagógica supervisionada nos currículos dos cursos que preparam para a docência. 

Formalmente, nos cursos de formação inicial de educadores de infância e de professores dos 1º e 2.º ciclos do ensino básico, esta componente está presente do primeiro ao último ano de estudos, designada como “iniciação à prática profissional”, na licenciatura, e como “prática de ensino supervisionada”, no mestrado. Nos cursos de mestrado em ensino do 3.º ciclo e do ensino secundário (formação bi-etápica), a prática de ensino supervisionada tem lugar durante os dois anos do curso.

Porém, ainda não é plenamente reconhecido o valor formativo que a prática pedagógica tem em si mesma. São relativamente diminutos os tempos de intervenção direta dos formandos junto dos alunos, constituídos pela preparação / planificação da ação, a sua concretização e a avaliação dos resultados alcançados. O papel reservado aos formandos tem sido mais o de observadores do que o de atores num dado contexto escolar e letivo. A prática de ensino é, por vezes, ainda percecionada como um espaço de aplicação de teorias mais ou menos bem fundamentadas, tomando o professor principalmente como um técnico. Ora, a nosso ver, deveria ser a partir da prática contextualizada e dos problemas que ela levanta que as teorias deveriam ser chamadas, de modo a contribuir para a melhoria dos processos de ensino-aprendizagem e para uma reflexão profissional aprofundada. Um processo desta natureza deveria estar espelhado nos relatórios de conclusão dos cursos, apresentados pelos formandos e sujeitos a discussão pública.

Há muitos outros aspetos críticos da formação inicial merecedores de atenção e discussão que aqui não desenvolveremos A título de exemplo: o modelo ou modelos de formação; os métodos e técnicas usados pelos formadores; o papel e o estatuto dos professores cooperantes; a iniciação dos formandos em metodologias de investigação; a incorporação das tecnologias digitais na formação; a formação ética e deontológica dos futuros professores.

Esperamos ter demonstrado que a defesa da profissão e a sua valorização também passam por todos estarmos atentos ao que se passa na formação inicial e implicados na sua discussão. 

Texto original publicado no Escola/Informação n.º 310 | janeiro/fevereiro 2025