Artigo:Porquê este desinvestimento na Educação, na Escola pública?

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Encontro Nacional do 2.º e 3.º Ciclos do Ensino Básico e do Ensino Secundário (FENPROF)

Porquê este desinvestimento na Educação, na Escola pública?

Lígia Calapez e Sofia Vilarigues
I Jornalistas I

O  Auditório da Escola Secundária de Camões, em Lisboa, acolheu, a 10 de novembro, o Encontro Nacional dos Professores do 2.º e 3.º Ciclos do Ensino Básico e do Ensino Secundário, subordinado à temática do exercício da profissão e das condições de trabalho. 

No encontro foi aprovada uma carta reivindicativa. Houve um amplo debate – em paralelo com elucidativas e enriquecedoras intervenções, nomeadamente dos convidados Licínio Lima, Universidade do Minho, e Manuela Esteves, Universidade de Lisboa – em que ressaltaram questões que por vezes se diluem nas árduas dinâmicas do dia a dia.

No início dos trabalhos do Encontro – e precedendo a intervenção de abertura de José Costa, presidente do SPGL – coube a Manuela Mendonça esboçar o quadro internacional em que se inscreve a realidade da escola e dos professores em Portugal. E, aí, surge um primeiro destaque: problemas e soluções, presentes no Encontro, “são comuns a muitos outros países, na Europa e no mundo”. Por exemplo, num país como a Noruega, “20% dos lugares a concurso são, neste momento, preenchidos por pessoal não qualificado, não habilitado para a docência”. No seu relatório anual, a Internacional da Educação conclui que a profissão docente se encontra subvalorizada, sobrecarregada de tarefas e mal remunerada. Factos preocupantes que apontam para a urgência de investir na educação e na profissão docente. O que passa também, como é sublinhado em muitos documentos internacionais, pela necessidade de “respeitar os professores e os seus saberes pedagógicos, a sua voz, nos processos de negociação”. 

Uma realidade que, pelo seu carater generalizado, não pode deixar de colocar uma questão de fundo: porquê este desinvestimento, porquê este desrespeito?

 

Lideranças e relações de poder nas escolas

“É possível a apropriação plena da autonomia curricular (na expressão do DL 55/2018) em escolas heterogovernadas e sem professores e educadores verdadeiramente autónomos?”. Este foi o ponto de partida da intervenção de Licínio Lima, que se centrou na análise das lideranças, com o retorno à figura do diretor e uma “lógica gestionária de um perfil, um projeto, uma equipa de gestão, remetendo para algo semelhante ao princípio da unidade de comando, proposto no início do século XX por Henri Fayol para a administração industrial”. 

Em causa está uma desprofissionalização dos docentes, desintelectualizando os educadores profissionais, transformando intelectuais profissionais em técnicos. Uma “desvalorização crescente do pensamento pedagógico, da investigação em educação, da defesa de modelos de formação de professores, que limitam a mínimos didáticos o seu currículo”. 

É neste contexto que Licínio Lima coloca a questão de “como compreender que o governo desafie as escolas, em 2018, a fazer aquilo que o DL 55/2018 chama uma plena apropriação da autonomia curricular?”. “Até que ponto e com que limites é possível a flexibilidade curricular num contexto historicamente marcado pela centralização do currículo?”, pergunta. “Então a autonomia da escola não contemplava a autonomia flexibilidade curricular? O projeto dito educativo da escola não contempla o currículo? Então contempla o quê?”. “Qual é a nossa margem de manobra na escola?”

“O que nós temos de exigir na escola é ser parceiros do processo de codecisão do currículo”, defende. “Não existe alternativa democrática, justiça escolar e uma educação como processo de humanização dos seres humanos que não sejam edificadas sobre a promoção da autonomia substantiva e sobre o seu exercício concreto, não apenas por parte dos professores e de outros atores educativos, mas também através de práticas de cidadania que promovam a autonomia dos alunos: o centro da autonomia educativa e curricular, não o seu complemento ou mero objeto de enriquecimento”.

Nesta perspetiva, Licínio Lima considera que o caminho é “uma estratégia de levar a autonomia e a flexibilidade a sério”. Interpelando, a partir das suas práticas, “o ME, testando os seus limites e expondo-o às contradições que vai produzindo”.

“Uma luta muito difícil, que exige muito empenho, muito saber, muita inteligência e muita coragem”. Mas que é um caminho.

 

Falta de professores e formação

“Porque é que há falta de professores? E a formação dos professores pode dar algum contributo para resolver este problema? Ou não?” Foi com estas questões que Manuela Esteves abriu a sua intervenção.

Manuela Esteves começou por apresentar um conjunto de dados que ajudam a caracterizar a situação atual da falta de professores. Um estudo da Universidade Nova chegou à conclusão de que num período de 10 anos (entre 2021/22 e 2030/31), será necessário substituir um terço do grupo profissional do ensino não superior (34 508 novos docentes). Sendo que 61.8% dos novos professores destinam-se ao 2º ciclo, 3º ciclo e ensino secundário.

Porque é que há esta falta de professores? “Nós podemos começar por colocar a questão de maneira bondosa, se foi uma imprevidência. Mas, nada há a favor desta imprevidência. Porque há muito tempo que vão sendo feitos estudos, inclusive dentro do ME. E há muitos anos que os nossos sindicatos e a nossa federação começaram a alertar para a gravidade deste problema. E, portanto, do meu ponto de vista, não se tratou de imprevidência, mas de uma deliberação. Uma deliberação que eu penso que apostou fundamentalmente na degradação da profissão como sendo essa uma boa solução para o problema”.

A formação pode dar algum contributo para resolver o problema da falta de professores? “Sim, se: aumentar o número de vagas dos cursos de mestrado; tornar a profissão mais atrativa; aumentar a segurança dos novos profissionais à entrada na profissão; aumentar a confiança dos profissionais já em serviço, valorizando as suas experiências, ajudando no exame crítico das mesmas e incentivando a inovação; promover o desenvolvimento profissional, o profissionalismo e a profissionalidade docentes”.

Portanto, a valorização da educação e da profissão não é apenas função da formação, por mais esclarecida, aprofundada e especializada que ela seja. A associação entre a melhoria da situação profissional e a elevação da qualidade da formação pode contribuir para superarmos a falta de professores. A formação pode e deve ser um instrumento de libertação. Um convite ao exercício da cidadania. Percebendo bem o que é ser professor e o que é ensinar e para que serve a educação. Um ponto de passagem para a construção de uma ética profissional, da qual nunca nos ocupámos aprofundadamente. Um fator de elevação da autoestima individual e do grupo profissional, para além de, obviamente, preparar para uma intervenção pedagógica cada vez mais competente”.

 

Um inquérito muito esclarecedor, uma carta reivindicativa a apontar lutas futuras e um debate diversificado

A apresentação das conclusões preliminares do Inquérito sobre horários e condições de trabalho aos professores do 2.º e 3.º CEB e do ensino secundário (ver pp. 10 e 11)    foi realizada por António Anes, do SPGL, coordenador do grupo de trabalho. O inquérito vem na sequência de um estudo semelhante de 2017. Comparando dados sobre a evolução da duração do horário de trabalho semanal, a lei diz que é de 35 horas semanais mas, em 2017, era de 46 horas a perceção que os professores tinham de gastar no seu trabalho e, em 2023, de 50 horas. Dados esclarecedores. 

No encontro foi, no final, debatida e aprovada a “Carta reivindicativa para o exercício da profissão e para as condições de trabalho” (que se encontra online no site do SPGL(1), que faz uma análise da situação atual e aponta “30 reivindicações para resolver problemas que são sérios”.

A falta de professores foi, naturalmente, um dos temas recorrentemente abordados e comentados no debate. Uma realidade que pode tornar inevitável, no imediato, o recurso a professores com habilitação própria. E levanta múltiplas questões. Nomeadamente a necessidade de exigência, como defendido por Carlos Vasconcellos (SPGL), de uma rápida formação complementar e vinculação desses professores.

A grande sobrecarga que recai sobre os professores foi, igualmente, tema em destaque, até pelos seus reflexos na saúde dos docentes - “uma profissão humanamente extraordinária, mas também veículo de doença”, como assinalou Rui Teixeira (SPRA). Tal como outros tópicos relevantes, como o ensino profissional (que atualmente abarca mais de metade dos alunos do ensino secundário). Ou o Português Língua Não Materna que, nalguns casos, como denunciou Paula Rodrigues (SPGL), é ministrado ora na CL ora na CNL dos professores; uma situação de clara desigualdade, com impacto em todas as disciplinas, e que põe em causa os direitos dos alunos. 

Houve ainda lugar a um alerta, por parte de António Avelãs (SPGL). Partindo da ideia de que “a falta de professores pode ser uma questão estrutural, porque ela não limita o desenvolvimento da economia neoliberal”, estaríamos perante uma intencionalidade, uma aposta numa elite económica, uma relegitimação do princípio da desigualdade. “É isso que nós temos de combater. E exigir que haja bons professores para todos. Temos de politizar o nosso discurso, na escola e na sociedade”.

A encerrar, Mário Nogueira, secretário-geral da FENPROF(2), fez uma apreciação do atual momento político, das questões orçamentais e dos desafios futuros que se colocam à luta dos professores.

 

(1) https://www.spgl.pt/encontro-nacional-dos-professores-do-2-o-e-3-o-ceb-e-do-ensino-secundario

(2) https://www.spgl.pt/encontro-nacional-dos-professores-do-2-o-e-3-o-ceb-e-do-ensino-secundario

Texto original publicado no Escola/Informação n.º 306 | nov./dez. 2023