Artigo:XIX Encontro Nacional da APEM | “A arte tem essa beleza de poder ser um exercício onde cabem muitas coisas diferentes”

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XIX Encontro Nacional da APEM

“A arte tem essa beleza de poder ser um exercício onde cabem muitas coisas diferentes”

Lígia Calapez e Sofia Vilarigues | Jornalistas

Construir música de forma coletiva e criativa é, de algum modo, o lema e a prática da APEM – Associação Portuguesa de Educação Musical e do Cantar Mais. Dimensões que estiveram em foco no XIX Encontro Nacional, que se realizou no passado dia 8 de novembro, na Gulbenkian.

Do programa, que decorreu ao longo de todo o dia, aqui destacamos alguns dos momentos mais significativos.

 

O Cantar Mais tornou-se um espaço de encontro

“Queremos reforçar a ideia de que a experiência do Cantar vivida de forma coletiva, crítica e criativa constitui um caminho privilegiado para desenvolver competências musicais, sensibilidade estética e consciência cultural”, afirmou Manuela Encarnação, presidente da Direção da APEM, na abertura do encontro.

Para este Cantar, partiram de duas premissas fundamentais. “Por um lado, a importância de um repertório adequadamente concebido, cujas melodias se adaptem à tessitura vocal das crianças e apresentem características melódicas e rítmicas ajustadas ao seu estádio de desenvolvimento. Por outro lado, o desafio maior de refletir sobre o que entendemos por qualidade estética ou musical, numa canção para a infância, uma questão intrinsecamente subjetiva e contextual, mas que exige critérios conscientes e fundamentados”. Esses critérios cruzam vários elementos, “desde logo os elementos musicais, melodia, harmonia, ritmo, instrumentação, os elementos da lírica, a clareza, a adequação vocabular, a riqueza poética e temática e elementos pedagógicos e emocionais”. No Cantar Mais todas estas dimensões têm sido trabalhadas “com o propósito de, precisamente, disponibilizarmos canções que sejam cantadas por crianças, é essa a grande diferença, cantadas por crianças, significativas e esteticamente relevantes”.

Ao longo destes dez anos, o Cantar Mais tornou-se um espaço de encontro “entre compositores, educadores, músicos e as próprias crianças, evidentemente, promovendo um diálogo entre tradição e inovação, repertório popular, criação original. Todos estes diálogos mantêm-se diariamente neste projeto”.

Manuela Encarnação terminou com um alerta: “Tenho que deixar aqui dito que o futuro preocupa-nos, porque este ano letivo o Ministério da Educação retirou o apoio ao Cantar Mais”.

A educação é uma construção da nossa liberdade com os outros

“Porque é que as humanidades não nos humanizaram. Porquê é que o horror da Segunda Guerra Mundial teve lugar naquela que era na altura a nação mais educada e mais culta do mundo?”. Porque é que “a educação não nos liberta do ódio?”

É a partir deste desafio, desta pergunta do filósofo Steiner, que Sampaio Nóvoa desenvolveu toda a sua intervenção. Desde logo referindo o contraponto proposto por Steiner: a invenção dessas “três ocupações, vícios ou jogos de uma dignidade completamente transcendente”: a música, a matemática e o pensamento especulativo (incluindo a poesia, cuja melhor definição será “a música do pensamento”).

Como é que podemos “resolver esta tensão, este dilema”, perguntou-se. E recorreu à “resposta extraordinária” de Oliver Reboul: “sermos livres e não estarmos sós”. Somando assim, ao imperativo de sermos livres, uma outra dimensão: “não basta a cultura, se a cultura não tiver uma dimensão de encontro”. Ou seja: a educação (tal como a cultura) “não é apenas uma construção da nossa liberdade, é uma construção da nossa liberdade com os outros”.

Um conjunto de questões que são alinhadas e aprofundadas no terceiro grande relatório da UNESCO sobre o futuro da Educação – “Reimaginar os Nossos Futuros Juntos, um novo Contrato Social para a Educação” – de que “a palavra decisiva é a palavra juntos”.

Assim se regressou ao dilema inicial, apresentado por George Steiner. E se alinharam respostas e propostas possíveis para que possamos “construir uma escola e uma educação onde a força dos juntos possa realmente ser verdade”. Que, no fundamental, assentam em três palavras.

 A palavra cooperação (o que implica que a escola seja um lugar onde as crianças trabalham, pois, “o trabalho é o que nos permite a dinâmica de cooperação”).

O conceito de convivialidade (“a cooperação remete-nos muito para a ideia de conhecimento juntos, a convivialidade remete-nos muito para a ideia de relação”).

A palavra cidadania - não apenas no sentido de educação para a cidadania; mas também de como a escola irá responder àquela que é a grande mudança do nosso tempo – “como é que vamos sentar à mesma mesa seis gerações” (a metáfora utilizada por Tolentino de Mendonça): Ou seja – a escola, para além de um espaço protegido, que deve manter-se, tem de incluir “uma dimensão de abertura”, de abertura cidadã ao espaço público da educação, da participação na educação de várias gerações.

A raiz de todas estas palavras é a palavra comum, sublinhou Nóvoa. “É sobre a ideia do Comum que, em grande parte, o George Steiner elabora a música como um espaço de liberdade”.

Uma liberdade “construída fortemente a partir do comum, a partir da comunhão e a partir da comunicação”. “Essa liberdade livre e diferente que tanto precisamos para os dias de hoje.”

10 anos a Cantar Mais

Gilberto Costa e Carlos Gomes apresentaram o Cantar Mais (https://www.cantarmais.pt/pt), neste aniversário dos seus 10 anos.

“O Cantar Mais nasceu para levar para o terreno aquilo que é a base, na minha ideia, do desenvolvimento musical, que é o cantar. O cantar é a ferramenta mais democrática que existe para nós nos expressarmos com a música”, introduziu Gilberto Costa.

Aquilo que procuraram foi “trabalhar com as pessoas, trazer de baixo, criar este projeto de uma maneira que as pessoas sentissem que também faz parte delas, para ser utilizado”. E contam já com mais de 200 canções, que foram criadas com a colaboração de 40 escolas, mais de 100 maestros e professores, mais de 200 músicos e compositores, mais de 400 crianças. Neste momento, têm mais de 25 mil utilizadores registados.

Sobre esta criação de canções Carlos Gomes salientou que “as crianças ficam maravilhadas com coisas que já não nos maravilham. Temos de nos transformar, teleportar-nos para outra idade”.

Para além do foco e o centro do trabalho do Cantar Mais, “que é criar conteúdos, pesquisar música, fazer arranjos, trabalhar com músicos, nós, na missão, temos um ponto que diz incentivar a produção artística dentro das escolas” e “fomos tentando criar projetos para trabalhar no terreno”, disse Gilberto Costa.

Dentro dos seus projetos destacaram dois. O Cantar Mais Liberdade, que “foi um projeto que visou refletir as ideias do 25 de Abril nas escolas a partir da criação e composição de canções” e que contou com os músicos Ana Bacalhau, Carlos Guerreiro e João Afonso, e com a curadoria de Vitorino. Dentro de três escolas, criaram “um conjunto de atividades em que os músicos, os professores e as crianças estiveram num programa de cocriação de uma canção, e ao mesmo tempo preparavam um reportório de dez canções associadas ao imaginário do 25 de Abril”. Culminou com um grande concerto no Fórum Lisboa. A segunda iniciativa “que tem tido muito impacto nas escolas é o concurso da Canção à Espera de Palavras”. Trata-se de um concurso em que para uma composição musical, pedida a um músico, cada “turma, em comum, escreve um texto de uma canção, com os seus imaginários, com os caminhos que encontrarem”. O concurso vai na sexta edição e cerca de 36 mil crianças já tiveram esta experiência, com média de 400 turmas por ano.

Deixando pistas para o trabalho dos professores a partir do Cantar Mais, na conclusão, Carlos Gomes disse que “nós temos de olhar para as pessoas que temos à frente e pensar como é que eu vou tornar viva esta canção?”. E deu exemplos, como o de uma canção a partir de um poema de Eugénio de Andrade, O Pastor. “É lindíssima, é uma canção sobre estar sozinho, sobre a amizade. Pus as crianças a ouvir a canção, a cantar a canção. Cada uma delas foi buscar um amigo, enquanto nos movimentávamos com a canção a cantá-la”. 

Da Canção ao Cantar: Ouvir, Fazer e Criar

Experiências da canção e do cantar foi o primeiro grande tema de debate da mesa-redonda. Que envolveu quem, de modos diferentes, trabalha a música com crianças. Tentando integrá-la na prática pedagógica generalista. Ou dedicando-se a “vestir uma canção”. Participaram na mesa, Carlos Garcia, Maité Bilbao, Bárbara Ramires, Carlos Gomes, Gilberto Costa e Erica Mandillo. Moderaram Manuela Encarnação e António Vasconcelos.

Na prática pedagógica generalista de uma escola, uma aposta possível é, por exemplo (como foi nomeadamente salientado pela experiência da Voz do Operário), “como é que eu posso trazer essa estética, trazer essa riqueza da canção para a pôr ao serviço de outras áreas menos ligadas diretamente com a música”. Ou, ainda, “ter propostas, sim, mas, mais importante é dar utensílios aos miúdos para eles conseguirem despoletar as propostas deles”.

Na perspetiva de quem vai “vestir uma canção”, outras, ainda que confluentes, são as experiências. No mundo real, quando se vai fazer uma canção “o mais importante é o contexto”. “Trazer algum maravilhamento”, ir “descobrindo a canção pouco a pouco”. Pois “o que torna uma coisa simples ou complexa é a maneira como se faz essa coisa”. E transformar os estudantes - que “deixam de ser meus alunos, passam a ser os meus artistas. Deixo de ser professor passo a ser músico e estou a fazer música com eles”.

Neste abrir de caminhos, quem escreve ou quem ensina a canção tem de “ser capaz de colocar uma moldura para que as crianças consigam ver, aquilo que ali está, numa perspetiva interessante”. E, por vezes, “uma melodia simples pode ser uma coisa extraordinária quando é cantada com sentimento, com emoção, ou quando as pessoas sentem de facto aquela melodia”.

Em torno de Tradição e criação - o reportório de hoje, desenvolveu-se um amplo debate. Tradição, porquê? Tradição ou tradições? (Re)construir tradições?

Tradição, memória, “são elementos fundamentais na construção das nossas identidades”. Este um ponto de partida avançado pelo Cantar Mais. Com que se foram articulando muitas outras questões e desafios. “Como é que podemos ver a canção da Marianita com o rap, por exemplo? Será que faz sentido? Não faz sentido?”  Como é que se consegue pensar “nesta relação, entre aquilo que é mais convencional do ponto de vista das técnicas, do ponto de vista das estéticas, e o contemporâneo - um desafio fundamental no atual contexto”. Como pensar uma identidade “aberta ao tempo de hoje?”. Podemos falar de tradição? Ou de tradições?

As tradições “vão sofrendo mutações, vão sofrendo alterações, e nós fazemos parte disso e podemos ser um motor para que a tradição mais antiga não se perca e que possamos ter um papel ativo neste lado de construção, de continuação, de mutação das próprias tradições” – foi particularmente sublinhado ao longo do debate.

Por outro lado, através da canção podemos “ensinar aquilo que hoje em dia é mesmo premente ensinar, que é que o mundo é feito de muitas pessoas muito diferentes e que temos que aprender a viver todos juntos e que todas as culturas têm coisas para nos ensinar”. E esse trabalho é possível. Com o Cantar Mais Liberdade esteve-se “numa escola em que a turma tinha talvez 60% de alunos estrangeiros. A tradição é outra. Mas nós conseguimos fazer trabalho reformulando as tradições e a cultura de cada um”.

No fundo, “a arte tem essa beleza de poder ser um exercício onde cabem muitas coisas diferentes”.

Investigação e criação de conhecimento. Este o tema que encerrou o amplo debate e partilha desta mesa-redonda. E a primeira questão que se colocou foi: “de que modo é que o Cantar Mais contribui, ele próprio, para a produção de conhecimento?”. E ainda: “de que modo é que a pesquisa e investigação, mais formal menos formal, pode contribuir para trabalhar as questões da música, da canção, num contexto de desenvolvimento musical e humano?”. E como articular tudo isto?

Em torno desta problemática, a escola surgiu como um exemplo concreto desta articulação. Articulação que pode passar, nomeadamente, por trazer artistas a trabalhar com professores em sala de aula: com vantagens para todos. Para as crianças, naturalmente. Para os professores, que assim podem alargar horizontes e investir em novas práticas, “podermos, às vezes, soltar destas amarras que a pressão de ser professor muitas vezes nos impõe”. Para os artistas, por que lhes permite conhecer o contexto escolar.

Assim, também, se podem ultrapassar separações rígidas entre funções – professor, compositor. E retornar a uma perspetiva antiga da música. “Na música já estava tudo isso, já estava o multidisciplinar. E nós viemos daí”.

Em jeito de conclusão, o moderador elencou 3 aspetos centrais, e um quarto, diferente.

A centralidade das crianças (de aluno a actor). A centralidade dos professores (e dos músicos) – alguém que lança pistas, que cria maravilhamento.

O cosmopolitismo e a convivialidade entre diferentes, que nos pode ajudar a “conviver com as diferenças” e a alimentar “o imaginário e as imaginações”, também construindo atividades artísticas e pedagógicas.

Saberes e conhecimento. Uma área em défice, que se poderá contribuir para colmatar, introduzindo a dimensão de pesquisa, de investigação, “nas próprias aulas, com as crianças e os jovens”.

Por último, a necessidade de conexão, ao arrepio “deste capitalismo selvagem, que conduziu à segmentação”. Voltar um pouco “ao conhecimento do Renascimento”.  Alargar horizontes. Reencantarmo-nos e, “com esse nosso reencantamento, conseguirmos criar outros reencantamentos”.

O encontro encerrou com um fantástico concerto, “Cantar Mais e Mais”, que juntou vozes infantis, do Agrupamento de Escolas Gil Vicente, com a maestrina Ana Venade, e do Coro Infantil da Universidade de Lisboa, dirigido por Erica Mandillo.

Texto original publicado no Escola/Informação Digital  n.º 47 | novembro/dezembro 2025