Vida a prazo
Na passada segunda-feira, o Conselho Nacional de Ética e Deontologia da Ordem dos Médicos (CNEDM) elaborou um conjunto surpreendente de recomendações sobre as ‘opções’ dos médicos no contexto do agravamento da atual pandemia. A primeira recomendação é que os cuidados intensivos deverão ser proporcionados aos pacientes com “maior probabilidade de sobrevivência após o tratamento”. No que respeita à preservação da vida, é aconselhado aos médicos que “deve preferir-se” a do “maior número” e “aquela em relação à qual haja a perspetiva de perdurar mais anos” (Fonte: ‘Público’, 11. 11. 2020).
Antes de tudo, todas as vidas têm igual dignidade social seja qual for a idade do doente, não podendo ser avaliadas em termos quantitativos, pois cada uma delas tem uma qualidade única, irredutível não sendo legítimo aplicar-lhe o critério de subordinação das minorias à maioria que é um critério político, de resto com graves limitações, já que, apesar de não se poder tolerar uma ditadura das minorias, a usual, não é lícito, mesmo em termos políticos, aceitar como alternativa uma ditadura da maioria, ainda para mais em questões de saúde pública, que é precisamente o que é proposto pela CNEDM.
Em segundo lugar, as vidas humanas não têm prazo de validade ou de garantia, pois são inalienáveis e invioláveis, não podendo ser equiparadas aos produtos dispostos nas prateleiras dos supermercados ou nas lojas de eletrodomésticos, que é o que realmente acontece com esta recomendação do CNEDM. Assim, tanto os mais velhos como os mais novos têm um direito igual à preservação da vida. Mas esta igualdade não pode ser uma igualdade abstrata, para evitar que alguns sejam privilegiados em detrimento de outros. É precisamente neste âmbito que a CNEDM comete o erro mais grave: não é verdade que se os mais velhos têm uma menor probabilidade de sobrevivência, enquanto os mais novos uma maior probabilidade de recuperação são precisamente os primeiros a necessitar de mais cuidados?
Na Suécia, durante a primeira vaga da pandemia, os idosos dos lares foram abandonados à sua sorte, sem tratamento, pois a prioridade num país em que a pandemia disparou na base da ilusão de que a imunidade de grupo acabaria por funcionar e limitar o número de infeções era a preservação dos mais jovens que acabaram por auferir de uma espécie de direito exclusivo à existência, conceção absolutamente inaceitável no plano ético e, no caso português, no plano político, pois a Constituição da República Portuguesa estabelece, no nº1 do artigo 13º, que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social” e, no nº1 do artigo 25º, que “a integridade moral e física das pessoas é inviolável”. Eis as razões pelas quais, as recomendações da CNEDM, acabam por ter, se forem aplicadas, um efeito contrário às boas intenções que estiveram na sua origem, abrindo a porta a uma forma de eugenismo: evitar o pretenso declínio da ‘estirpe’ nacional, na prática a sua consequência lógica.
Joaquim Jorge Veiguinha