Artigo:Uma questão de princípio

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Uma questão de princípio

A sociedade não é um somatório de Robinsons Crusoés, mas o conjunto das inter-relações que determinam e enformam a vida e o modo de ser dos indivíduos. Por isso, certos crimes cometidos contra um indivíduo são crimes que põem em causa o relacionamento e a vivência social. Entre estes destaca-se o crime de violação cujas principais vítimas são as mulheres. Ao violar uma mulher o criminoso viola não apenas a autonomia e a dignidade da vítima, mas também o contrato social tácito ou explícito que impede que cada um seja submetido ao predomínio ou à vontade de um outro. Assim, quem viola uma mulher não viola apenas a sua autonomia e dignidade, mas também a minha, a de outros e a de outras que integram a sociedade. Por isso, defendo que o crime de violação deve ser considerado não como crime privado, nem mesmo como crime semipúblico, mas como crime público.

Espanta-me a argumentação falaciosa de quem insiste em considerar a violação como crime semipúblico. De um modo geral, os defensores e defensoras desta posição consideram que a violação como crime público é de «enorme violência e paternalismo» e traumatizante para a mulher que fica exposta, o que poderá inibi-la de revelar a sua situação. Pelo contrário, é precisamente porque a violação deve ser considerada legislativamente como um crime público que a sociedade reconhece a dignidade e a autonomia da mulher violada, porque este crime não é apenas um crime contra esta ou aquela mulher, mas contra todas as mulheres e contra a própria sociedade. Certamente o direito da mulher à privacidade e a não ser exposta à humilhação deve ser preservado no decurso do processo, cabendo aos tribunais arranjar formas de o garantir. A haver paternalismo esse provém dos que são contra a violação como crime público, pois concebem a mulher mais como uma vítima do que como um sujeito capaz de se autodeterminar. De facto, são precisamente estes e estas que não reconhecem a autonomia da mulher, o seu direito a assumir que foi violada e a denunciá-lo publicamente. Ou será que continuam a considerar as mulheres como filhas de um deus menor, mais movidas pelo medo do que pela coragem e autodeterminação? E, mais grave ainda, têm ainda o desplante de se arvorarem em defensores dos direitos das mulheres. É de referir, para memória futura, que apenas Portugal e São Marino não assumiram no Conselho da Europa a violação como crime público em oposição à França, Espanha e Reino Unido.

Joaquim Jorge Veiguinha