Uma ordem internacional instável e insegura
A NATO decidiu reforçar o seu contingente militar na fronteira oriental da Europa de 40 000 para 300 000 efetivos. Paralelamente, dois países tradicionalmente neutrais, a Suécia e a Finlândia, têm o caminho aberto para aderirem a esta organização militar do Ocidente após a retirada do veto da Turquia. Ao que tudo indica os velhos e os dois novos membros daquela organização militar do mundo ocidental deram um aval ao regime de Erdogan para continuar a massacrar impunemente o povo curdo e a perseguir opositores: pacto de extradição com os dois países nórdicos de opositores do regime turco e de representantes de organização curdas e possível venda à Turquia de caças de F16 pelos EUA.
Até há pouco tempo, a NATO era considerada clinicamente morta. O anterior Presidente norte-americano, Donald Trump, tinha-lhe passado a certidão de óbito, enquanto o Presidente francês, Emmanuel Macron, diagnosticava, por sua vez, a sua ‘morte cerebral’. Ao que tudo indica, graças à invasão russa da Ucrânia, esta renasceu das cinzas muito fortalecida, contradizendo as notícias exageradas da sua morte iminente.
Está a formar-se uma nova ordem internacional sobre as ruínas da antiga. Ainda no período da Guerra Fria foi fundada, em 1975, pelos acordos de Helsínquia, a Conferência sobre a Segurança e Cooperação na Europa, em que participaram os países ocidentais e a ex-União Soviética, que se tornou um instrumento fundamental da política de dissuasão, da chamada “détente” da época, e contribuiu decisivamente para a manutenção da paz na Europa e no mundo. Esta Conferência manteve-se com sessões contínuas até 1990, sendo substituída, em 1994, pela Organização de Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) que recolheu o seu legado. Em 12 de Setembro de1990, foi também assinada na capital francesa por diversos Estados europeus, os EUA, o Canadá e a ex-União Soviética de Gorbatchev a Carta de Paris para uma Nova Europa. Estas três iniciativas institucionais assinalaram a formação de uma ordem internacional baseada em regras, as quais, ao contrário do que insinua o sociólogo Boaventura de Sousa Santos num artigo publicado em 27 de junho de 2022 no jornal Público, não foram exclusivamente instituídas pelo Ocidente, já que as duas primeiras contaram com o reconhecimento do defunto mundo soviético. Muito pior do que uma ordem internacional baseada em regras, mesmo que estas sejam alegadamente estabelecidas pelo, para alguns pelo Ocidente, é uma ordem internacional sem regras que é a que se está a constituir após a agressão da Rússia de Putin a um Estado soberano, a Ucrânia.
No passado sábado, foi convocada uma manifestação sob a palavra de ordem “Paz Sim!, Corrida aos armamentos Não!, em que participaram a CGTP-IN e cerca de 80 organizações. A iniciativa defendia que “o respeito pelos princípios do direito internacional, conformes com a Carta da ONU e os constantes na Acta Final da Conferência de Helsínquia, é o caminho para garantir a paz, a segurança, a cooperação, a justiça e os direitos dos povos”. Ao lermos esta proclamação solene sentimo-nos transportados aos defuntos tempos da Guerra Fria do Conselho para a Paz e Cooperação, como se desde então o mundo não tivesse mudado, se tivermos sobretudo em conta a invasão da Ucrânia pelo regime de Putin que mudou completamente a arquitetura da segurança e cooperação europeia herdado daquela época. Se as organizações responsáveis pela proclamação reconhecessem, nem que fosse implicitamente, que a Ucrânia e o povo ucraniano foram invadidos e os seus direitos barbaramente violados pela Federação Russa estas notas seriam redundantes. Infelizmente, não é caso. Por isso, justificam-se
Que paz? A não condenação inequívoca da bárbara agressão russa à Ucrânia torna a paz uma questão abstrata que através de uma tática que a dilui no seio de uma série de conflitos que marcam também a atualidade internacional e tendem, é certo, a ser colocados pelos mass media internacionais e sobretudo nacionais em segundo plano – Palestina, em que foram recentemente mortos pelas tropas israelitas civis alguns dos quais crianças, Sara Ocidental, Iémen, Síria, Líbia ou Iraque, de acordo com a proclamação. Com esta tática, já velha, evita-se, porém, tomar posição sobre a invasão da Ucrânia e, complementarmente, analisar as suas causas. Ou será que os seus organizadores consideram que esta foi, no fim de contas, uma espécie de reação de autodefesa perante um alegado cerco da NATO à Federação Russa que só depois, e não antes, daquela invasão se está efetivamente a concretizar? Nunca se sabe o que lhes passa pela cabeça.
Que segurança? Como se pode apelar à “segurança” quando a agressão russa à Ucrânia demoliu a arquitetura da segurança europeia sem criar alternativas e mergulhando o mundo numa nova época marcada, pelo contrário, pela instabilidade e a insegurança?
Da mesma forma, como se pode falar em cooperação sem condenar explicitamente a Rússia de Putin que pôs em causa os instrumentos de cooperação internacional construídos até aos dias de hoje?
Como se pode ainda reclamar por justiça, quando não se reconhecem, ou então se consideram frutos da propaganda ocidental e ucraniana, os massacres de Bucha, os bombardeamentos indiscriminados que têm morto milhares de civis ucranianos e os saques da população ucraniana perpetrados não por um verdadeiro exército, mas por uma horda de bárbaros com armas que nada tem a ver com o exército soviético que contribuiu para a libertação da Europa do nazismo?
Por fim, como se pode defender os “direitos dos povos” quando se recusa a afirmar de forma inequívoca a solidariedade com o povo ucraniano barbaramente agredido e cujo direito à soberania e autodeterminação tem sido cruelmente violado pelas tropas da Federação Russa?
Presente na manifestação, o secretário-geral do Partido Comunista Português, Jerónimo de Sousa, em declarações ao DN, afirmou que “não toma partido por nenhum dos lados do conflito”. É lícito perguntar, por exemplo, que posição tomaria Jerónimo de Sousa em 1939 perante a invasão da Polónia pelas tropas nazis. Provavelmente, seguiria os passos dos seus apaniguados do Komintern estalinista que subscreveram o pacto germano-soviético que desimpediu o caminho a esta: “no comment”. Uma coisa, pelo menos, é certa: tudo aponta para que alguns personagens e organizações estejam contaminados por uma doença recente, a afasia política, que, no passado, se chamava cegueira ideológica.
Joaquim Jorge Veiguinha