Artigo:Uma coisa é uma coisa, outra coisa…

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Uma coisa é uma coisa, outra coisa…


Uma coisa é a simpatia que temos pela Ucrânia, por ser vítima da injustificada invasão pela Rússia e estar a sofrer todos os horrores da guerra — território devastado e população em indizível sofrimento — e por travar um combate de vida ou de morte pela liberdade e independência, e toda a nossa solidariedade e ajuda serem poucas para que a metáfora bíblica de David e Golias se cumpra.

Já outra coisa é querermos a Ucrânia na UE e a Suécia e a Finlândia na NATO.

O historial dos alargamentos da União Europeia não deixa dúvidas quanto à complexidade e morosidade do processo de adesão. Áustria, Suécia e Finlândia, três democracias ditas avançadas e contribuintes líquidos para o orçamento da UE, cumprindo à partida todos os critérios das 35 áreas de negociação, esperaram cerca de quatro anos. A então CEE só aceitou Portugal em 1 de Janeiro de 1986, ao fim de nove anos de negociações. O alargamento aos países do Centro e Leste europeu demorou mais de dez anos. Albânia, Montenegro, Macedónia do Norte, Sérvia e Turquia, candidatos há anos, e dois potenciais candidatos, Bósnia-Herzegovina e Kosovo, todos conseguindo cumprir alguns critérios de adesão, continuam e continuarão à espera. No caso da Ucrânia, dada a dimensão geográfica e populacional e o descalabro económico, social e político provocado pela guerra, a demora, a menos que a Comissão Europeia queira abrir um precedente difícil de gerir, será de dois ou três decénios.

Para a Ucrânia poder ser integrada na UE tem de criar instituições estáveis que garantam democracia, Estado de direito, direitos humanos e respeito pelas minorias. Tem de ter uma economia de mercado capaz de enfrentar a pressão concorrencial. Tem de adaptar as instituições e a economia à união política, económica e monetária. Tem ainda de ter capacidade para assumir todas as obrigações decorrentes da adesão, incluindo a aplicação das regras e políticas do enorme acervo comunitário que se espraia por 35 áreas.

A Ucrânia tem um comércio externo fortíssimo, como se pode ver pela falta que se sente, em consequência da guerra, dos produtos ucranianos no mercado internacional, mas, por causa da corrupção, é um dos países mais pobres da Europa; o povo ucraniano pode estar a representar os nossos valores e modo de vida ao enfrentar Putin, mas o funcionamento da sociedade ucraniana está muito longe dos padrões europeus — a revista The Economist qualifica a Ucrânia como um regime híbrido, com desempenho democrático pior que o Malawi, a Tunísia ou o Bangladesh.
As ambições russas são assustadoras para os Estados vizinhos, Ucrânia, Finlândia e Suécia, que se querem manter democráticos, soberanos e independentes. A inqualificável invasão da Ucrânia e o atávico e anacrónico belicismo de Putin precipitaram os pedidos de adesão da Suécia e da Finlândia à NATO, que parece desejosa de os integrar. Na dimensão geopolítica emergem logo certas reservas e interrogações — estas adesões não ajudam ao processo negocial para a paz na Ucrânia; este cerco da Nato empurrará a Rússia para a órbita da China e do chamado Sul Global, resumido no sugestivo acrónimo CRIPI (China, Rússia, Irão, Paquistão e Índia), retirando ao Ocidente capacidade de influenciar no futuro as decisões do kremlin. E dir-se-ia que no Ocidente e na NATO se está a esquecer que a Rússia faz parte, e é um Estado central, da Organização para Cooperação de Xangai (OCX), fundada em 2001, organização militar de oito Estados-membros que representa cerca de metade da população mundial, sendo quatro deles (China, Rússia, Índia e Paquistão) potências nucleares. Ora, está a NATO preparada para integrar países que fazem fronteira com a Rússia, criando uma situação de permanente tensão político-militar com a OCX? É razoável aceitar o risco da retaliação nuclear de Putin e seus aliados? Não seria melhor garante da paz na Europa manter uma zona-tampão formada pela Suécia, Finlândia e Ucrânia, política e militarmente neutra, entre os actuais países europeus da NATO e a Federação Russa?

Francisco Martins da Silva