Um trabalhador não é uma alfaia
Temos o péssimo hábito de só nos mexermos quando a casa está a arder. As televisões e as redes sociais trazem o zumbido, depois o clamor e tudo se ofusca para as atenções se centrarem no “problema”. Só que o “problema” estava há muito identificado, mas assobiava-se para o lado, fazia-se de conta que não existia, ignorava-se. Entretanto as situações degradam-se e há sempre quem se aproveite do descontentamento popular para ir ganhando adeptos e fazer o seu caminho.
Claro que estou a falar de Odemira. As televisões correram lestas atrás das vozes dos populares que apontavam os imigrantes como a peste que levou à cerca sanitária! É assim que se gera a xenofobia. É assim que medram os populistas. “Um trabalhador não é uma alfaia” é o título do editorial de hoje de “O Público” “Sem covid-19, os migrantes continuariam invisíveis, como é bom de ver. Até aqui de nada terão valido as várias denúncias feitas por associações, e até pelo presidente da câmara municipal, junto das instituições competentes.” A escravatura, o tráfico de seres humanos, a total ausência de direitos sonegados por empresários sem escrúpulos, a habitação indigna e sobrelotada, as empresas de trabalho temporário, as empresas de prestação de serviços, tudo isso era já do conhecimento não só dos habitantes locais, como das autoridades municipais e nacionais. O SEF tem 32 inquéritos a decorrer naquela região do Alentejo, a ACT tem conhecimento dos abusos e das fraudes, houve, desde 2018, onze detenções e constituídas arguidas 37 pessoas, 14 empresas e sinalizadas 134 vítimas de tráfico de pessoas… mas as culturas intensivas emergentes, o trabalho sazonal a precisar de uma mão-de-obra que não existe na região, vai socorrer-se destes trabalhadores, mas vai tratá-los como se fossem escravos, peças de uma engrenagem para dar lucro, “uma alfaia”, nas palavras de Amílcar Correia, autor do editorial a que me refiro neste pequeno texto.
Alberto Matos, dirigente da Solidariedade Imigrante e fundador da FENPROF, denuncia estas redes de trabalho escravo no Alentejo, muito antes da pandemia de covid. O aumento exponencial de casos entre estes trabalhadores migrantes veio destapar um problema sanitário grave e de exploração e ausência de direitos, que se costuma identificar em países lá longe na Ásia como o Bangladesh, mas que afinal estão mesmo aqui no nosso belo litoral alentejano.
O editorial termina com palavras do dirigente da Solidariedade Imigrante: “Prometem o céu mas vão espalhar o inferno”. E o editorialista remata “Sem a pandemia não saberíamos do inferno”.
A sério?
Almerinda Bento