Artigo:Um precedente muito preocupante

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Um precedente muito preocupante

 

“Para que não se possa abusar do poder é preciso que, pela disposição das coisas, o poder trave o poder”. Esta frase de Montesquieu fundamenta o princípio da separação de poderes reconhecido pelo artigo 2º da Constituição da República Portuguesa (CRP). Este não é um princípio meramente formal, pois tem a mesma importância e dignidade do que o de soberania popular, pluralismo e organização política democráticas igualmente reconhecidos pela lei máxima do país. Poderemos mesmo dizer que ele é tanto o principal obstáculo à concentração de poderes em mãos do governo, como o delimitador das competências, para utilizar a expressão da CRP, dos outros dois poderes, legislativo e judicial, que não estão autorizados a imiscuir-se na esfera do executivo, e vice-versa.

O Presidente da República (PR), insigne constitucionalista, parece ter esquecido que não é o Soberano, nem mesmo o ‘chefe de Estado’ – isso era no tempo da ‘outra senhora’ –, mas apenas um órgão de soberania, juntamente com a Assembleia da República, o Governo e os Tribunais. Ao promulgar três decretos aprovados na AR sobre apoios sociais, aos trabalhadores independentes e aos sócios gerentes de pequenas empresas, aos pais em teletrabalho e aos profissionais de saúde, o PR pôs em causa o princípio de separação de poderes, em particular a lei travão da CRP que impede a AR de aumentar a despesa ou diminuir a receita num orçamento de Estado aprovado por este órgão legislativo, cuja execução compete, segundo os mesmos princípios constitucionais, exclusivamente ao executivo e a fiscalização ao Tribunal de Contas.

Não está em causa o mérito social das medidas aprovadas pela AR. No entanto, ao contrário do que alguns defenderam, a violação do princípio da separação de poderes pelas ‘boas razões’, ou seja, por “uma questão de justiça” não garante que seja posto em causa posteriormente, noutras circunstâncias, pelas ‘más’. Além disto, o facto de a AR ser um órgão de soberania em que uma maioria aprovou os apoios sociais não a exime de desrespeitar aquele princípio. Mas o que causa verdadeiramente espanto é o facto do PSD e do CDS, que quando foram governo lançaram um brutal ataque contra os apoios e as prestações sociais sem os quais 40% da população portuguesa viveria abaixo do limiar de pobreza – 60% do rendimento mediano –, venham agora, arvorar-se em campeões da solidariedade social. O CDS/PP – esse partido que entre muitas outros desmandos aprovou a lei dos despejos que o transformou no ‘partido do táxi’ – dá o mote quando afirma que “se o Governo iniciar uma batalha jurídica no Tribunal Constitucional para impedir a atribuição destes apoios, estará a insultar todos os que mais sofrem e precisam do Estado para ter uma vida com dignidade”. Eis o grau de oportunismo político mais despudorado, tendo em conta os ‘precedentes’.

A questão fundamental aqui é outra: foi aberto um precedente pelo PR que pôs em causa o princípio da separação de poderes que poderá ter consequências extremamente graves no futuro. Constitucionalmente vivemos numa democracia em que vigora o mandato representativo que tem como um dos seus elementos estruturantes este princípio e não numa democracia direta centrada no mandato imperativo em que, como defendia Rousseau, “quando o povo está legitimamente reunido como soberano imediatamente cessa toda a jurisdição do governo, fica suspenso todo o poder executivo…”. Só que nesta forma de democracia não existem pluralismo político e separação de poderes. Por isso, quando no século XX esta tentou concretizar-se contra os alegados ‘malefícios’ da democracia dita ‘burguesa’ degenerou numa ditadura impiedosa por mais revolucionária que se classificasse a si própria.   

 

Joaquim Jorge Veiguinha