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Um dos nossos?

No Índice de Percepção de Corrupção de 2021, relatório anual que a Transparência Internacional publica desde 1995, a Ucrânia continua a figurar como um dos países mais corruptos do mundo. Aparece agora no 122º lugar (Portugal está 32º, Espanha em 33º), em 188 países, abaixo de muitos Estados habitualmente considerados cleptocracias. Mesmo que haja vontade, esta corrupção endémica transversal não se resolve nem num decénio. O actual Presidente ucraniano, Volodimir Zelensky, tendo sido eleito mercê duma campanha em modo comediante, populista, anti-sistema, a ridicularizar a desonestidade dos seus rivais e a garantir intrépido combate à corrupção, foi desmascarado em Outubro de 2021 pela investigação designada Pandora Papers, publicada pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigadores (ICIJ). Constatou-se que Zelensky e os seus sócios da empresa de produção Kvartal 95 instalaram a partir de 2012 uma rede de empresas offshore que serviu para evasão fiscal e, entre outros negócios, comprar três propriedades no centro de Londres.

O nacionalismo que impulsionou os protestos de 2014, a chamada Revolução Euromaidan, que depôs o governo pró-russo e deu início à aproximação da Ucrânia ao Ocidente, é de extrema-direita. A principal facção é o Azov, acusado de crimes de guerra contra os separatistas da região de Donbass. Tortura, saques, violações, limpeza étnica e perseguição de judeus e homossexuais são algumas das atrocidades atribuídas a este movimento. Destes confrontos no Leste ucraniano, onde as Repúblicas de Donetsk e Lugansk se declaram independentes, reconhecidas por Putin em 22 de Fevereiro, no dia anterior à invasão, já resultaram 14 mil mortos.

A par da corrupção, o neonazismo não é menos grave na Ucrânia. Este país é o único onde um nazi, Stepan Bandera, chefe histórico da Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN) e colaboracionista com o III Reich na II Guerra Mundial, foi condecorado por um Presidente da República (Viktor Yushchenko), e onde milícias neonazis, nomeadamente os Batalhões Azov e Aidar, foram integradas no exército regular.

Azov e Aidar, a par de outras organizações do mesmo jaez, como o C14 (ala jovem do partido Svoboda) ou os gangues Dnipro-1 e Dnipro-2, doutrinam, armam e treinam adultos, jovens e crianças e são tratados como heróis.

Estes grupos neonazis não aplicam apenas a cartilha ultranacionalista. Actuam com violência contra imigrantes, pessoas LGBTQIA+, ciganos, judeus e católicos. No relatório “A New Eurasian Far Right Rising”, de 2020, a organização Freedom House concluiu que a direita radical/neonazi «representa agora um elemento sofisticado e politicamente influente da sociedade ucraniana». A Freedom House considera os grupos neonazis ucranianos altamente profissionais. É exemplo a actuação do partido Svoboda, que ostenta símbolos nazis e disputa eleições desde 2010. O Atlantic Council, grupo informal de discussão da NATO, já tinha reconhecido em 2018 que a Ucrânia tem um problema de extrema-direita.

A declaração demagógica, insensata e despropositada de Ursula Van der Leyen de que a Ucrânia “é um de nós”, criou esperança infundada e dispensável aos ucranianos, neste contexto de extrema incerteza.

Albânia, Montenegro, Macedónia do Norte, Sérvia e Turquia, candidatos há anos, conseguem cumprir alguns critérios de adesão, ao contrário da Ucrânia, e nunca suscitaram este entusiasmo.

Não é juridicamente possível accionar o processo de adesão da Ucrânia, enquanto as fronteira não forem definidas ou redefinidas, além dos magnos óbices da corrupção endémica e do extremismo de direita. A adesão de um Estado à UE não obedece a “procedimento especial” como pediu Zelensky, mas ao exigente articulado do Tratado de Lisboa, como a Carta dos Direitos Fundamentais e o artigo 49º que exige expressamente a unanimidade dos 27 Estados-membros.

Por fim, um aparte: segundo a ACLED, Armed Conflict Location & Event Data Project, (https://acleddata.com/dashboard/#/dashboard), que regista as mortes em guerra em todo o mundo, a estatística no 20º dia após a invasão da Ucrânia era a seguinte: 1062 Ucrânia, 36177 Afeganistão, 2861 Burkina Faso, 18872 Iémen, 1043 Índia, 2549 Iraque, 2234 Mali, 10467 Nigéria, 5653 República Democrática do Congo, 5541 Síria, 3326 Somália, 1266 Sudão… Nenhum banho de sangue pode relativizar ou justificar outro banho de sangue. As outras tragédias não terem merecido qualquer atenção dos media, nem antes nem agora, leva-nos a concluir que o mecanismo sociológico da empatia moral e da indignação públicas é assistido por critérios tenebrosos.

Francisco Martins da Silva