Suspensão temporária de patentes
Em 2019, a comercialização do sofosbuvir, medicamento contra a hepatite C, cuja patente pertencia a uma grande empresa farmacêutica, foi racionada por diversos sistemas públicos de saúde europeus em consequência dos seus custos elevadíssimos: 20 000 euros por um tratamento de três meses.
Confrontamo-nos atualmente com um problema semelhante relativamente à nova variante do coronavírus, designada por ómicron. Segundo os dados mais recentes, a nova variante não teve origem na África do Sul, pois já circulava no continente africano em outubro. No entanto, este país viu as suas fronteiras bloqueadas ao resto do mundo e os seus conacionais submetidos a um conjunto de restrições às suas viagens para o estrangeiro, apesar da ómicron, considerada de “risco muito elevado” pela Organização Mundial de Saúde (OMS), ter sido descoberta por uma equipa médica sul africana.
Fazendo um balanço crítico da conjuntura pandémica, podemos concluir que o fecho das fronteiras, se tem revelado manifestamente ineficaz em consequência das baixas taxas de vacinação que afeta sobretudo os países mais pobres que acabam por ser literalmente postos em quarentena pelo mundo desenvolvido. O insucesso em conter a difusão de um vírus que se replica em novas variantes cada vez mais infeciosas e eventualmente mais mortíferas exige que se tomem medidas urgentes a nível global com o objetivo de vacinar e testar maciçamente as populações. Neste sentido, a Índia e a África do Sul, países em que foram detetadas as duas últimas variantes, apresentaram à Organização Mundial do Comércio (OMC) no ano passado uma proposta para a suspensão temporária das patentes das vacinas, com vista à partilha de informação e conhecimentos que viabilize a sua produção e distribuição maciça à escala global. A proposta voltará a ser discutida na 12ª Assembleia Ministerial da OMC que se iniciou em 30 de novembro.
Apesar de mais de uma centena de países, de que se destacam os EUA, terem concordado com a suspensão, a União Europeia e alguns países exportadores de vacinas opõem-se-lhe com o argumento de que a atual regulamentação sobre licenças voluntárias permite aumentar a produção à escala global. Defendem ainda que se abriria um precedente que afetaria negativamente o potencial de inovação da indústria farmacêutica quando esta se torna cada vez mais a principal beneficiária da difusão do vírus.
Este argumento é absolutamente inaceitável. Antes de tudo, porque o vírus continua a alastrar em consequência das baixas taxas de vacinação em continentes como o africano em que apenas 7% da população está vacinada. Prova disso é que o programa Covax que foi criado para fornecer vacinas aos países mais pobres distribuiu apenas 550 milhões de embalagens, um número manifestamente insuficiente para satisfazer as necessidades de todos. Isto significa que as medidas altruístas, apesar de louváveis, acabam apenas por tapar “o sol com a peneira”, já que não impedem a propagação da infeção e, consequentemente, o confinamento sanitário a que são submetidos os países mais débeis que são precisamente os mais afetados pela pandemia.
Não restam dúvidas que apenas quando a maior parte da população mundial estiver vacinada se poderá voltar à normalidade, superando em definitivo esta estratégia de ‘stop and go’ que se torna cada vez mais insustentável, para além de gerar um crescente descontentamento social que nos países mais desenvolvidos favorece objetivamente as forças de extrema-direita. Deparamos por isso não apenas com uma questão sanitária, mas também com uma questão política global. Justifica-se então a suspensão temporária das patentes das vacinas, o que nos conduz a uma interrogação dirigida aos ‘negacionistas’: quando está em causa, como no caso do sofosbuvir, o direito à vida deverá ou não prevalecer o direito de propriedade? Poder-se-á aplicar a este caso o princípio da eficiência de Vilfredo Pareto, economista e sociólogo italiano que inspirou as doutrinas neoliberais, como aquela situação em que a condição de, pelo menos, uma pessoa melhore, desde que a de, pelo menos, uma outra não piore? Antes pelo contrário: para que a condição da grande maioria melhore é necessário que a de alguns, neste caso a das multinacionais farmacêuticas, sofra algumas restrições em nome do bem comum. Ou não será que estas empresas são também devedoras e não apenas credoras da sociedade pelos avanços científicos e tecnológicos de que julgam ser exclusivas responsáveis?
Joaquim Jorge Veiguinha