Sintomas do Paroxismo Neoliberal (à la Trump)
A COVID-19 vem expor agora o quão fundo se entranhou a ideologia neoliberal, ao ponto de, no país mais poderoso do mundo, e depois de menos de dois meses de crise económica decorrente da doença, 1/5 das crianças norte-americanas não comer o suficiente.
Claro que muitas das crianças nos EUA, especialmente as mais pobres, já são privadas de há muito de uma dieta minimamente saudável, em parte fruto da ausência de verdadeiras políticas públicas que não sejam a defesa dos interesses das grandes corporações, cujo lobby em prol do lixo alimentar que vendem acaba por redundar em estabelecimentos de ensino a impor refrigerantes, fast-food e alimentos altamente processados nas refeições escolares.
Essas práticas criminosas, institucionalizadas, que têm o seu correspondente europeu na Grã-Bretanha, são um dos sintomas do neoliberalismo, agora agudizados pela pandemia, os quais decorrem de um mecanismo patológico intrínseco a essa corrente ideológica.
Esse mecanismo está bem plasmado no título de um artigo publicado no Le Monde Diplomatique de há alguns anos atrás: "A América nas Cabeças". Evoco o título, não o conteúdo, como síntese curta de um processo de meio século de desmantelamento do Estado Social americano, não só e apenas de facto, mas também como legítima aspiração dos eleitores americanos, os quais acabaram por paulatinamente aceitar colocar o próprio destino na mão de especuladores e empresários sociopatas, os tais 0,1 a 1% dos verdadeiramente ganhadores duma economia feudalizada.
Esse mecanismo é o da passividade democrática da generalidade da população, derrotada pela máquina de propaganda do complexo industrial-militar, o qual refinou e consolidou as suas estratégias de manipulação da opinião pública a pontos orwellianos, ou além disso. O culto da personalidade, ou melhor, a suscetibilidade de grandes fatias da população a essa espécie de pecado capital já denunciado no Velho Testamento na figura do bezerro de ouro, não resulta apenas da Fox News e seus adjacentes. É o resultado natural dum processo de engenharia social assente na exploração do que de pior a América herdou da sua História, e que acabou exportando para o mundo inteiro, culturalmente falando.
Sim, a Europa tem resistências naturais, pela sua diversidade cultural, pela sua história, pelo seu dinamismo e força política. Mas não é imune. Especialmente quando, pela imposição de um sistema financeiro mundial dominado pela ganância corporativa, seja por via da União Europeia ou pelos Governos, é atacada por iniciativas políticas que conduzem à desregulamentação do mercado de de trabalho e da economia, deixando os mais fortes em posição de esmagarem os trabalhadores ou as pequenas empresas, externalizando os problemas ambientais para as gerações futuras...e atuais.
Não deixa de ser interessante que não haja quase ninguém, aqui e além mar, a reivindicar, de forma muito primária e deselegante, o confisco dos triliões colocados em off-shores em todo o mundo, como uma das medidas justas e necessárias para combater a pandemia, ou, pelo menos, a colocar a hipótese de que este sistema de cleptomania de base ideológica neoliberal tenha de ser rapidamente alterado (excecione-se o BE). Pois para isso também era preciso atacar os bilionários que, como Bill Gates, se pavoneiam mundialmente na veste filantrópica à custa do dinheiro que devia ter sido canalizado através do Estado para os serviços públicos americanos ou para as Nações Unidas poderem realizar o seu trabalho.
Aliás, como não vimos praticamente nada disto a acontecer no pós-crise de 2008, com os contribuintes a pagarem as dívidas dos bancos, os bens públicos a serem privatizados com prejuízo de todos nós, sem nenhuma alteração de fundo no sistema financeiro mundial que sustenta o neoliberalismo.
Aparentemente, as crises estão a reforçar o neoliberalismo para-fascista internacional, tal como podem servir de pretexto para reforçar ditaduras ou tendências autoritárias, pois o que se verifica, tanto no exemplo bolsonariano, como no trumpiano, é a extrema resiliência da estupidez humana que os apoia, por mais maligna ou escandalosa se revele a sua ação política. A qual parece ter crescido bastante ultimamente, tanto em número, como em atrevimento.
João Correia