Artigo:Roe v. Wade em risco

Pastas / Informação / Todas as Notícias

Roe v. Wade em risco

Segundo uma notícia do jornal Político, uma maioria de cinco juízes conservadores do Supremo Tribunal de Justiça dos EUA, três dos quais nomeados por Donald Trump, prepara-se para anular a decisão de 1973, conhecida por Roe v. Wade, que institucionalizou o direito à interrupção voluntária da gravidez, bem como a decisão de 1992, Planned Parenthood v Casey, que a complementou, estabelecendo um prazo entre as 22 e as 24 semanas para que a mulheres pudessem exercer este direito.

O Político teve acesso a uma versão preliminar da decisão que será tomada em definitivo em junho ou julho deste ano em que o juiz conservador Samuel Alito justifica a revogação dos dois precedentes que instituíram o direito à interrupção voluntária da gravidez a nível federal: “Acreditamos que a Roe e a Casey devem ser revogadas. A Constituição não faz qualquer referência ao aborto e tal direito não é implicitamente protegido por qualquer disposição” (DN, 4.05.22). Acrescenta ainda que “em muitas outras ocasiões este tribunal anulou importantes decisões constitucionais… Sem essas decisões, a lei constitucional dos Estados Unidos, tal como a conhecemos, seria irreconhecível e este seria um país diferente” (El País, 4. 05. 22).

É completamente absurda a insinuação de que o direito ao aborto deve estar explicitamente inscrito na Constituição de um Estado: em Portugal, também não o está e este é legal, apesar de alguns dos seus opositores terem invocado o artigo 24º sobre o direito à vida que nada tem a ver com a questão, mas com a proibição da pena morte. A versão preliminar inspira-se numa decisão sobre a lei do Mississípi que, em 2018, reduziu o período das 22-24 semanas da Casey para apenas 15 semanas, enquanto outros estados conservadores, de que se destaca o Texas, visavam estabelecer um período para interrupção da gravidez de apenas 6 semanas, ou seja, um prazo em que muitas mulheres não sabem ainda sequer se estão ou não grávidas. Se o novo precedente for confirmado, a interrupção voluntária de gravidez será proibida a nível federal, o que constituirá uma enorme regressão civilizacional. Caberá então aos estados decidir se querem ou não manter o direito à interrupção voluntária da gravidez, como já anunciou o governador da Califórnia Gavin Newson: “Não vão calar as nossas filhas, irmãs, mães e avós (…) A Califórnia não se vai ficar. Vamos lutar com tudo o que temos” (Público 4. 05. 2022). Existe já um projeto para uma alteração à lei do estado com vista a reconhecer o direito à interrupção voluntária da gravidez nas eleições intercalares de novembro.

No entanto, o panorama não é favorável aos defensores da liberdade de opção das mulheres. Se a Roe e a Casey forem revogadas pelos menos 22 estados em 50, preparam-se para proibir a interrupção voluntária da gravidez, a que se vão juntar mais quatro. Como existem 14 estados que limitam o direito de acesso das mulheres a esta prática, a possibilidade de a fazem livremente sem restrições reduzir-se-á praticamente apenas a 7 estados. Os estados mais pobres do interior e do Sul fazem parte do extenso grupo dos abolicionistas, restringindo consideravelmente o direito das mulheres mais pobres a interromperem a gravidez num estado em que o aborto seja legalmente reconhecido, mas que se situará a grande distância, tendo em conta os custos da deslocação e de estadia. Estas mulheres não viajam de avião frequentemente e não se deslocam facilmente de um estado para outro como as personagens femininas das classes médio-altas dos filmes de Hollywood. Além do mais, se o novo precedente entrar vigor, abrir-se-á uma via para serem abolidos outros direitos e conquistas históricas, como o das relações entre casais do mesmo sexo e até o uso de contracetivos. A jurista Mary Ziegler, expressou claramente, num artigo publicado na revista Atlantic, a regressão civilizacional representada pela abolição da Roe v. Wade: “[o tom do texto da versão preliminar] demonstra quão arrogante é esta supermaioria conservadora, como está disposta a assumir algumas das questões mais polémicas das guerras culturais, como se mostra displicente relativamente a decisões importantes, e como está aberta a fazer mudanças rápidas e profundas em matérias que têm em conta precedentes com uma grande tradição” (El País, 4.05.2022).

Joaquim Jorge Veiguinha