Artigo:Retrato de um país que (não) produz «riqueza suficiente»

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Retrato de um país que (não) produz «riqueza suficiente»

Referindo-se ao alegado subfinanciamento da escola pública e do SNS, a dirigente máxima de uma central sindical afirmou recentemente que «é necessário intensificar a luta e exigir soluções para uma situação que não é inevitável, porque nós produzimos riqueza suficiente. É a política do governo que tem que mudar» (DN 13/02/2023). Concordando plenamente que a situação referida não é inevitável, tenho, porém, algumas dúvidas que o país produza atualmente «riqueza suficiente» para se autossustentar. Gostaria de partilhá-las com os leitores:

- Descontando a inflação acumulada, a agricultura portuguesa gerava, em 2021, um valor acrescentado bruto (VAB) de 3,5 mil milhões de euros, o que equivale a menos de metade do que produzia em 1980, 8,184 mil milhões de euros, segundo dados da PORDATA, referidos pelo DN de 26/04/2022, graças sobretudo às políticas dos Governos do Professor Cavaco (1986-1995) que deixaram marcas profundas no setor; em 2021, o défice da balança comercial de produtos agrícolas aumentou 313 milhões de euros, representando o quarto maior saldo negativo dos bens transacionáveis, mais de 4000 milhões de euros (INE, Estatísticas do Comércio Internacional, 2021).

- Também graças à década perdida que marcou a integração de Portugal na União Europeia, foram atribuídos, em 1991, prémios ao abate de embarcações de pesca de 75 milhões de euros (cerca de 170 milhões de euros aos preços atuais) que também marcaram o fim  do país dos pescadores de Raúl Brandão, pois o défice da balança de pescas não mais parou de crescer, passando de 668 827 milhares de euros, em 2011, para 1 003 973 milhares de euros, em 2021, acompanhado pela quebra da população que se dedica a esta atividade e pela contratação crescente de mão-de-obra imigrante.

- A indústria transformadora tem registado quebras do emprego e do valor acrescentado bruto (VAB) desde 1993, mais uma herança envenenada dos governos do Professor Cavaco. Em 1990, esta representava 25,5% do VAB, estando alinhada com a média da UE. Porém, em 2014, ascendia apenas a 17,5% do VAB, -2,2% da média da UE, para encetar uma recuperação liliputiana que a fixou em 19,93% deste indicador, em 2019 (INE, Portugal 30 anos de integração europeia).

- Entre 2012 e 2019, a indústria transformadora cresceu, em média, 3,25%, enquanto as exportações de serviços turísticos aumentaram, em média, no mesmo período, 8,38%. Se não fosse o ano pandémico de 2020, em que o fluxo turístico foi interrompido, gerando uma quebra do PIB de 8,2% superior à taxa de crescimento inflacionada de 6,7% de 2022, a manter-se este diferencial, o valor das exportações turísticas e das atividades que a suportam ultrapassaria o VAB total da indústria transformadora em 2025: 29 643 milhões de euros contra 27 701,90 milhões de euros (PORDATA).

- Apesar do crescimento dos serviços turísticos e dos serviços não turísticos – estes últimos, de que se destaca a componente dos transportes, que equivalia a quase metade do total em 2019, com défices negativos – terem crescido significativamente nos últimos anos, o que caracteriza cada vez mais Portugal como um país de trânsito turístico e de consumidores passivos de mercadorias mesmo as mais elementares produzidas por outros, os défices da balança de bens transacionáveis não são geralmente compensados pelos saldos dos serviços turísticos. Em 2021, segundo o INE, estes bens representavam apenas 29,66% da capacidade exportadora do país relativamente ao PIB. A mesma fonte refere que no ano passado, a balança comercial portuguesa atingiu, graças à elevada inflação, um défice de 31 000 milhões de euros, «o mais elevado de que há registo» (Público, 10/03/2023).

Nestas precárias condições, devemos preocuparmo-nos em controlar os desequilíbrios orçamentais e com a situação dos aposentados do futuro que, em 2070, receberão apenas 40% do seu último salário, segundo projeções da Comissão Europeia. Não podemos deixar disparar a dívida externa que atingiu em 2021 191,29% do PIB, mas que no ano passado já tinha caído para 169,17% PIB, sendo problemático propor a criação de regimes específicos de aposentação sem propor novas modalidades de financiamento de um sistema público de pensões cada vez mais insustentável num país cada vez mais envelhecido com uma economia rentista e parasitária. A propósito: não sabem que em Itália, que não tem uma economia de ‘faz de conta’ como a nossa, o sistema público de aposentações já entrou em défice, pois o património líquido das pensões transalpinas registou, em 2021, um défice de 7552 milhões de euros, prevendo-se que, em 2029, ascenda a 92 043 milhões de euros? (Fonte: L’Espresso, 30/9/2022).

Em suma, eis o retrato de um país que, apesar das indemnizações milionárias escandalosas a alguns CEO, não produz «riqueza suficiente» sequer para satisfazer as necessidades e muito menos para gerar emprego suficiente com salários compatíveis com as qualificações de muitos jovens que saem das universidades e são obrigados a emigrar, enquanto os nómadas digitais são incentivados a estabelecer-se no país. É este o verdadeiro desafio que o país tem que enfrentar a partir de hoje. É necessário então produzir muito mais riqueza do que a que produzimos atualmente e reparti-la ainda mais equitativamente. E é precisamente por isso que são necessárias novas políticas públicas que criem um novo modelo de desenvolvimento que aposte no aumento da produção de bens transacionáveis e na qualificação e formação das jovens gerações. Entretanto, o movimento sindical tem necessariamente que intensificar a sua intervenção com vista melhorar, na medida do possível, tendo em conta os fortes constrangimentos de que não nos podemos abstrair, as condições de existência dos cidadãos e cidadãs que trabalham neste paraíso turístico à beira mar plantado.

Joaquim Jorge Veiguinha