Artigo:Restituição — mais uma etapa da descolonização

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Restituição — mais uma etapa da descolonização

Na Europa, as cidades e as instituições culturais mais importantes — universidades, museus, teatros — são do século XIX, o século do racismo. O século em que a medicina se dedicou a medir crânios e cérebros, a tentar provar a superioridade do intelecto caucasiano; o século da infame Conferência de Berlim (1884-85), quando os chefes de Estado da civilizada Europa se reuniram para dividir África entre si, como se as populações africanas fossem mera fauna exótica. Esta ideia de que a pessoa negra pertence à escala inferior do conhecimento, da cultura, dos valores, da moral, está inculcada na mentalidade europeia — fragilidade branca, como classifica Robin Diangelo, a incapacidade dos europeus reconhecerem o seu racismo, por vezes nos mínimos gestos e expressões, por vezes quando se julgam bem-intencionados, como aquela testemunha ocular do assassinato do actor Bruno Candé, que declarou candidamente às câmaras de televisão «ele até era muito simpático, apesar de ser negro».

Bénédicte Savoy, historiadora de arte francesa que vive em Berlim há 25 anos, e Felwine Sarr, economista e escritor senegalês, fizeram, a pedido de Emmanuel Macron, um relatório sobre o património de origem africana presente nas colecções públicas francesas. O documento, publicado em 2018, recomendava a restituição de todas as obras retiradas sem consentimento das antigas colónias em África, e tornou público o debate que se fazia na academia e nos museus há já 50 anos.

Há cerca de um ano, 26 artefactos monumentais foram devolvidos ao Benim (outrora Daomé, não confundir com o antigo reino do Benim, actual Nigéria) pelo Museu do Quai Branly, em Paris, e estão desde então expostos no palácio presidencial de Cotonu, para que possam ser vistos no país a que pertencem. Esta devolução é um tremendo precedente que contraria a indisponibilidade que os governos europeus têm demonstrado nos últimos 50 anos para discutir, sequer, a possibilidade de devolução. Dentro de meses, é bem possível que Berlim devolva à Nigéria 13 importantes bronzes do antigo reino do Benim, e há negociações para outras restituições à Nigéria e também à Costa do Marfim. Bélgica e Holanda estão a fazer o mesmo caminho.

O racismo tem sido determinante dos obstáculos à restituição. Para as sociedades dos países que foram colonizadores continua a ser difícil aceitar a restituição como necessária. Os grandes museus europeus, na primeira vaga do debate da restituição, nos anos 1970, argumentavam que os africanos só sabiam o que era a arte graças aos europeus e que não sabiam cuidar do seu património. Sobretudo entre os que viveram a descolonização, ainda campeiam estes preconceitos racistas.

Felizmente, hoje, quem tem menos de 30 anos não consegue compreender por que razão estes objectos estão nos museus europeus. Por isso, Savoy, quando esteve em Lisboa para uma conferência no âmbito da exposição Europa Oxalá (que reuniu na Gulbenkian obras de 21 artistas com origens nas antigas colónias africanas), disse não ter dúvidas de que a restituição se vai intensificar.

Por diferentes razões, muitos países africanos ainda não exigiram o que é seu. O Mali, por exemplo, tem uma das mais ricas culturas do continente africano, mas Samuel Sibidé, director do Museu Nacional, em Bamaco, que quer recuperar as peças dispersas pela Europa, considera que, de momento, estando o país em guerra, isso não é uma prioridade.

A Portugal ainda não chegaram pedidos oficiais de restituição de nenhuma das ex-colónias, mas o actual ministro da Cultura propõe-se fazer uma lista de património a devolver que tenha sido saqueado durante a Guerra Colonial ou obtido em qualquer contexto de “relação de poder desequilibrada”. Esta lista resultará da investigação que está a ser levada a cabo, desde 2020 e até 2024, pelo projecto “Transmat — Materialidades Transnacionais (1850-1930): Reconstituir Colecções e Conectar Histórias”, financiado com fundos públicos da Fundação para a Ciência e Tecnologia.

Na última vinda a Lisboa, Bénédicte Savoy foi ao Museu Nacional de Etnologia e viu que as (poucas) peças expostas são de colecções que vieram de África depois das independências. Não conseguiu informação das colecções trazidas durante os quase seiscentos anos de império. Para que os países africanos possam reclamar o que é seu, é fundamental que os inventários dos museus europeus sejam transparentes, e em Portugal, a informação acerca das colecções coloniais é quase inexistente.

Bénédicte Savoy considera que a restituição não deve ser forçada, mas deve haver disponibilidade para devolver e reflectir sobre o contexto em que estes objectos chegaram à Europa e torná-los visíveis.

Nestes objectos, os africanos reencontram-se com a sua História.

Os povos têm direito ao seu património.

Francisco Martins da Silva