Os professores obtiveram uma claríssima vitória: obrigaram o Partido Socialista (i.e, o seu governo) a deixar cair “leis” que considerava tão importantes que por elas sacrificou a sua maioria absoluta. Hoje nada resta (a não ser ainda as feridas por sarar) do “modelo de avaliação de desempenho” de Lurdes Rodrigues e a divisão entre “professores titulares” e “professores” tem a morte já legalmente enunciada. O mesmo acontecerá ao “estatuto do aluno”. Além disso, os sindicatos dos professores – particularmente os sindicatos da Fenprof – saem muito fortalecidos e prestigiados, deixando bem claro aos governos que ofender ou desvalorizar os docentes implica pagar um preço bem elevado. Por fim (e não é menos importante) os professores têm agora uma oportunidade de re-ganharem uma visão positiva da sua profissão e de si próprios.
Trata-se porém, até agora, de uma vitória pela negativa. Foram afastadas normas absurdas que eram fontes de enormes injustiças. Mais difícil é obter vitórias pela positiva: conseguir uma nova estrutura da carreira docente, um novo modelo de avaliação de desempenho, um novo “estatuto do aluno”, uma nova concepção do horário de trabalho (para só referir as questões mais imediatas) que os professores, as escolas e a comunidade educativa aceitem por serem instrumentos de melhoria do nosso sistema educativo. Tarefa do futuro imediato!
Para que este desafio seja levado a bom porto é útil uma análise do que se passou. Aqui ficam algumas ideias:
- Há uma falsidade sistematicamente repetida, nomeadamente pelo primeiro-ministro: a de que antes de M. Lurdes Rodrigues não havia avaliação dos professores. Havia. Centrava-se de facto na análise do seu trabalho pedagógico. Em muitas escolas (lamentavelmente não em todas) os relatórios entregues eram discutidos e “ajuizados” pelo Conselho Pedagógico. A atribuição de notas superiores a “regular” exigia muito mais rigor e cuidado do que a infestação de “muito bons” e “excelentes”, na sua maioria aleatórios e sem qualquer base, que este simplex “vomitou”. E porque alcançar um bom “ exigia então rigor e “verdade”, o governo não foi capaz sequer de construir as normas para a a atribuição de "muito bom".
- Uma outra falsidade divulgada pelo governo anterior: a avaliação não distinguia a qualidade e o mérito. Distinguia. E se não era possível distinguir ainda mais (não quero agora discutir se isso seria vantajoso) era apenas porque os governos (PS e PSD) não construíram os normativos necessários. Certamente porque conheciam a enorme dificuldade de construir tais normativos com justiça. Como a ignorância sempre foi idiotamente atrevida, M. Lurdes e a sua equipa rapidamente elaboraram normativos para o efeito. Com o resultado que está à vista de todos. Como os sindicatos sempre disseram, era possível trabalhar sobre o modelo anterior para o melhorar e tornar mais útil. Mas Lurdes Rodrigues e Valter Lemos não percebiam nada do que estava em jogo do ponto de vista do interesse das escolas. É pois um absurdo mistificador a ideia propalada de que à equipa de Lurdes Rodrigues se deverá atribuir o mérito de ter “fixado” para todo o sempre a princípio de que os professores têm de ser avaliados. Bem, pelo contrário: com os seus disparates, o que foi posto em causa é o princípio de que se pode construir um modelo justo de avaliação. Mais uma dificuldade a superar no futuro imediato. Apesar do que se passou nos últimos anos, entendo que os professores devem mesmo ser avaliados.
Nota: entenda-se sempre “professor” como englobando também os educadores e restringido ao ensino básico e secundário.
PARTE II
Sobre a “avaliação de mérito” O modelo de avaliação de desempenho agora “enterrado” previa que 5% dos docentes pudessem ter Excelente e 20% Muito Bom. Enorme optimismo: um sistema educativo em que 25% dos docentes estivessem claramente acima da média seria um sistema excepcional. Duvido que tal exista em qualquer país. Como em qualquer outra profissão, a maioria da classe dos docentes terá um desempenho normal, correspondendo aquilo que é exigido. As excepções, por excelência ou mediocridade, serão mesmo isso: excepções. 25% não é uma excepção. Não se é muito bom ou excelente um ano ou uma parte do ano. Muito Bom ou Excelente deve ser uma distinção de uma carreira (ou parte dela) e esse mérito tem de ser reconhecido pelos pares, deve fundamentar-se em critérios de rigorosa exigência e de reconhecimento exterior. Ora nós assistimos a Muito Bons e Excelentes atribuídos a recém-chegados à profissão, atribuídos por colegas que só contactaram um ano com esse docente. Seria como um cirurgião que se candidatasse e obtivesse uma avaliação de Excelente ou Muito Bom logo no primeiro ano do seu trabalho num hospital. Possível? Talvez. Mas seria um milagre. Tivemos classificações de mérito atribuídas a “avaliadores” cuja razão foi terem atribuído uma nota aos seus colega – não interessa se bem ou mal – e cuja prática pedagógica não foi sequer avaliada por ninguém. Tivemos notas de mérito atribuídas a professores reconhecidamente normais ou mesmo abaixo da média, porque “cabiam” na quota” e as indicações dadas pelo ME teriam sido no sentido de que as escolas deviam esgotar as quotas que lhes tinham sido atribuídas. O conhecimento que tenho do que se passou nas escolas permite-me concluir que a esmagadora maioria dos bons docentes participou activamente na contestação ao modelo, não entregou os “objectivos individuais” ou, pelo menos, recusou-se a pedir a avaliação chamada de “científico-pedagógica” que permitia obter menção acima de Bom. Com M. Lurdes Rodrigues não assistimos ao reconhecimento do mérito; mas assistimos à glorificação da mediania e da mediocridade. Uma amiga minha costuma dizer que ter um Muito bom ou Excelente neste processo deve ser, no futuro, razão de vergonha. É capaz de ter razão. A atribuição de nota de mérito excepcional deve ser uma proposta da escola, ou, pelo menos, ser “autorizada” pela escola; deve ser devidamente justificada e publicitados esses fundamentos, deve admitir a oposição de outros, e deverá ser confirmada por uma entidade exterior à escola. Só assim ela poderá superar a total subjectividade (ou oportunismo ou “amiguismo”…). Além disso, esse reconhecimento não pode penalizar outros docentes. É por isso que é uma completa irracionalidade fazer incidir essas avaliações de mérito excepcional na graduação para concurso. Que se premeie o mérito, mas que não se criem injustiças irreparáveis. Sobre a assistência a aulas Uma coisa é assistir a aulas de colegas para trocar opiniões sobre os melhores procedimentos, outra, bem diferente, é assistir a aulas com o intuito de as avaliar e dessa avaliação depender (parte) do futuro do avaliado. No primeiro caso, o coordenador do grupo ou de disciplina deve ter esse hábito, a incluir na sua carga horária. E reciprocamente, cada “assistido” deve assistir às aulas do coordenador. Para o segundo objectivo, porém, é preciso ter uma formação especializada para tão difícil tarefa. O que se fez no ano lectivo passado foi uma vergonha: a pedido de um qualquer colega do seu departamento, possivelmente até de outra disciplina, alguém foi obrigado a exercer uma função para a qual não estava – nem tinha que estar – devidamente preparado. O “avaliador” sujeitou-se sempre a que o “avaliado” não lhe reconhecesse competência para o avaliar. A menos que lhe desse no mínimo Muito Bom! (Nota: é verdade que nem sempre foi assim; mas basta que tenha havido um caso destes para se perceber o absurdo que foi sustentado). Acho pois que se deverá distinguir: lentamente, ir criando o hábito em cada escola de que haja assistência às aulas: mas que para efeitos de avaliação – eventualmente indispensável para a atribuição de “mérito excepcional” – tal tarefa só deverá poder ser exercida por um corpo devidamente especializado nessa área, eventualmente inspectores.
CONCLUSÃO
Da política e do sindicato
Esquematicamente pode dizer-se que todos os partidos políticos, como de costume, podem considerar que "ganharam" sob uma perspectiva e terão de reconhecer que perderam sob um outro ponto de vista. Só os professores ganharam inequivocamente.
Esclareçamos: O Partido Socialista é o mais perdedor. Fica por explicar o que levou o PS a hipotecar uma eventual maioria absoluta por uma acéfala insistência em soluções cuja inconsistência é agora — como já o era antes — cristalina. O PS perdeu um enorme número de votos para defender o que agora perde de forma definitiva e que durante muito tempo considerou inegociável e insubstituível. Poderá porém alegar que, com uma estratégia bem montada, conseguiu formalmente evitar uma "derrota parlamentar". O que é verdade.
O PS perdeu votos nas legislativas para todos os outros partidos da oposição parlamentar. E nesse sentido todos podem dizer que ganharam (O CDS/PP e o BE mais, o PSD e o PCP menos) com o apoio que deram aos professores. Mas o PSD terá dificuldade em convencer os professores que nele votaram da justeza do seu acordo com o PS, acordo que de resto está a provocar mais umas divisões internas no partido. Não deixa de ser significativo que sejam os sindicatos mais pequenos os mais críticos da posição do PSD, de quem são politicamente próximos. O CDS/PP, o Bloco e o PCP poderão dizer, com toda a verdade, que, juntamente com o PSD, a campanha que fizeram e a apresentação de projectos à AR obrigaram o PS a capitular (pelo menos para já...). Mas obviamente perderam as votações na AR, o que há uma semana atrás parecia pouco provável.
Os professores ganharam. Porque se mobilizaram, porque resistiram com inteligência e porque souberam utilizar a seu favor os interesses imediatos dos partidos políticos. Exemplificaram bem de que modo se pode utilizar o jogo político sem ficar refém de nenhuma estratégia política. É importante que assim continuem: o plano político e o plano sindical não são coincidentes, mas há que saber usar as diferentes intersecções.
Uma nota final: Há qualquer coisa de errado quando questões estritamente sindicais (a avaliação de desempenho docente e a estrutura da carreira) se tornam o centro do debate político de um país. É que não se trata sequer de discutir o sistema educativo! É altura de por na ordem do dia o desemprego, o défice orçamental e a economia. E a educação.