Quando é o poder que tem de ser julgado
Em boa hora um professor universitário e dirigente sindical do SPGL e da FENPROF vem, no “Público” de hoje, escrever um artigo de opinião com o título “O eterno retorno do assédio no ensino superior”. É na qualidade de dirigente do SPGL e “observador atento do atual panorama da academia portuguesa” que André Carmo escreve este artigo, começando exactamente dizendo que não é “especialista em assédio nem jurista”.
A polémica de assédio que saltou nos últimos dias, revelou por parte das instituições de ensino superior “uma enorme incapacidade para se olhar ao espelho e enfrentar, de forma consequente, aquilo que vê refletido.” André Carmo, na sua reflexão, não querendo desvalorizar nem escamotear que o assédio é um acto abjecto com contornos e consequências devastadores para as vítimas, considera que esta polémica não pode ficar restringida à questão do assédio sexual, nem à excessiva pessoalização, perdendo-se de vista o problema estrutural e sistémico que tem a ver com a democracia ou com a sua ausência no seio das instituições de ensino superior. “Mas é preciso também discutir o assédio moral que faz parte do dia a dia das instituições de ensino superior. Afinal de contas, onde há poder, desigualdade, assimetrias e hierarquias rígidas – e sabemos bem que, se o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente – existe um ambiente propício aos abusos de poder, à subserviência e à vassalagem, à inferiorização e ao amesquinhamento.” Lamenta a forma como a ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior Elvira Fortunato reagiu à polémica, de forma insensível e infeliz, varrendo o problema “para debaixo do tapete”. Como escreve André Carmo, há que ter audácia e aproveitar a oportunidade para transformar as instituições de ensino superior “Reformar onde é possível, revolucionar onde for necessário”. ”A inexistência de mecanismos eficazes para que as instituições de ensino superior lidem com o assédio é um rotundo fracasso que devem corrigir com máxima brevidade.”
As recentes denúncias de assédio na academia feitas por três investigadoras lembram denúncias antigas que acabaram por cair em saco roto. Exactamente há um ano, em Abril de 2022, uma manifestação juntou mais de 200 alunos e alunas denunciando os abusos na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Dos relatos de assédio por parte do corpo docente daquela escola foram validadas 50 queixas relativas a 10% dos docentes. Também no mesmo ano, foi noticiada uma denúncia de assédio sexual a uma aluna por parte de um professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Quem se lembra das peças na televisão em que jovens davam a cara denunciando os abusos e o clima tóxico que se vivia na Faculdade de Direito? Que consequências sobre os abusadores por esses actos?
Maria do Mar Pereira, professora na Universidade de Warwick e vice-directora do Centre for the Study of Women and Gender diz, em artigo do passado dia 13 de Abril no Jornal “Público”: ”Tratar estes casos de forma isolada é ignorar que esta é uma situação transversal ao meio académico em Portugal. Não há instituição em que não existam abusos de poder, que assumem várias formas, incluindo o abuso sexual.” e “… que se aplica na academia o que acontece noutras esferas da sociedade: quando há hierarquias que atribuem a certas pessoas grande influência e estatuto, torna-se mais difícil denunciar abusos de poder.” Perspectivando o futuro, Maria do Mar Pereira apela: “Temos de arranjar mecanismos que consigam ser mobilizados contra uma pessoa-estrela ou um desconhecido, seja na universidade, no cinema, na política…”.
Termino este texto de opinião, lembrando que em Portugal, a CITE define assédio sexual como “todo o comportamento indesejado de carácter sexual, sob forma verbal, não-verbal ou física, com o objectivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afectar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador.”
Será que a comoção do momento dará a vez ao tratamento rigoroso deste abuso no seio das instituições?
Almerinda Bento