Professores precários no ensino superior? Isso existe?
João Cruz
I Dirigente Sindical E. Superior e Investigação I
Na área geográfica do SPGL existem hoje 16 Instituições de Ensino Superior (IES) públicas e 26 privadas. Nas IES públicas civis aplicam-se, para contratar os trabalhadores afectos à docência e à investigação, três estatutos de carreira legalmente estabelecidos: i) o Estatuto da Carreira do Pessoal Docente do Ensino Superior Politécnico (ECPDESP); ii) o Estatuto da Carreira Docente Universitária (ECDU); iii) o Estatuto da Carreira de Investigação Científica (ECIC). Nas IES privadas as entidades patronais contratam professores e investigadores usando regulamentos da sua própria lavra, para categorias, funções, remunerações e tipos de contratos de sua alta recreação, porque não existe um Estatuto que regule este sub-sector, e a “lei da selva” tem sido bem tolerada. Também se praticam contratações fora da lei nas IES públicas.
Centremo-nos só nos docentes das Universidades e dos Institutos Politécnicos Públicos.
Nas IES públicas, apesar de ali vigorarem os Estatutos das Carreiras legais, também se fazem contratações fora da lei, fintando os ditos Estatutos ou, mais doutamente, abusando das categorias que, apesar de estarem definidas nos Estatutos das Carreiras, não permitem ao trabalhador fazer uma carreira. Parece paradoxal, mas o Ensino Superior é terreno de muita inventiva e sofisticada semântica.
O ECPDESP e o ECDU, que são em grande medida Estatutos gémeos, possuem capítulos dedicados a definir o que é, para que serve e como se contrata o “Pessoal Especialmente Contratado”, que abarca as categorias de monitores, assistentes convidados, professores convidados e professores visitantes. Quem for contratado para uma destas categorias pode trabalhar a tempo integral ou a tempo parcial e é recrutado por um processo simplificado que, na maioria das instituições, apenas requer a assinatura de um ou dois professores de carreira e o visto bom do Conselho Científico da escola, o que na maioria dos casos é uma mera formalidade automática. Na maior parte das instituições também se aplicam limites ao número de contratos consecutivos que uma mesma pessoa pode ter como “convidado” ou “visitante”. As pessoas assim contratadas não podem fazer “carreira” na instituição que os contrata porque é suposto tratarem-se de profissionais ou técnicos altamente especializados que são necessários para lecionar módulos muito específicos ou raros e relativamente marginais nos cursos de graduação ou pós-graduação. Também é esperado que não desempenhem funções permanentes da instituição.
As IES mais zelosas abrem a cada ano uma base de recrutamento. É uma figura legal que permite a pessoas com habilitações e competências especiais manifestarem a sua disponibilidade para lecionarem como docentes convidados nas Universidades e Politécnicos. Permite fazer uma lista atualizada de pessoas capazes e escolher de entre estas. Mas muitas instituições ainda evitam aplicar as bases de recrutamento e preferem recorrer exclusivamente às agendas de contactos pessoais dos diretores de departamento. É uma alternativa mais “amigável”, limitada e opaca.
Mas a realidade que encontramos nas IES está longe deste pacífico quadro de relacionamentos laborais. As IES foram ao longo dos anos aprendendo a abusar das figuras dos monitores, assistentes convidados e professores convidados para contratarem pessoas, à sombra daquelas categorias, para realizarem o trabalho de professores de carreira ou, num registo sombrio completamente segregado, para remunerar e conceder privilégios dentro de grupos de poder graças à possibilidade de recrutamento simplificado. A comunidade académica refere-se ao primeiro cenário como o dos “falsos convidados”. O segundo cenário chama-se “a família”.
Os “falsos convidados”, sejam monitores, assistentes ou professores convidados, são atirados para serviços que incumbem a professores de carreira, muitas vezes realizando o mesmo número de horas letivas, ou até mais, recebendo um salário a tempo parcial. A maioria das instituições aceita que um convidado contratado a 30 ou 50% possa lecionar o mesmo que um professor de carreira a tempo integral, aceita que um monitor lecione integral e não acompanhado semestres completos, e que os convidados façam orientações de mestrado e doutoramento, avaliações, júris de avaliação, investigação, sejam regentes de cadeiras e coordenadores de cursos, etc. Tudo por uma fração do vencimento. Tudo obediente e incontestadamente porque a renovação ou não renovação do contrato anual está dependente de uma assinatura. Não raramente é possível detetar relações de dependência em que o falso convidado não se cansa de dar aulas de substituição, em qualquer horário e dia da semana, escrever artigos científicos ou manuais para o seu patrono assinar ou aparecer como primeiro autor. Não raramente encontramos o mesmo convidado anos ou décadas sucessivas contratado a realizar sempre o mesmo trabalho. Trabalho que, evidentemente, não é marginal nem pontual na instituição. Muitos eternizam-se nestas condições mediante a desgastada promessa de acesso à carreira, por um concurso mil vezes anunciado mas que nunca ocorre devido a um qualquer malvado detalhe burocrático cujo tutor não conseguiu controlar. Amiúde, quando o falso convidado ousa discordar sonoramente da figura tutelar ou recusa-se a realizar mais uma tarefa não remunerada, vê evaporar-se da noite para o dia a “especifica competência científica” que em tempos foi alardeada para fundamentar a sua contratação. Não volta a ser contratado.
Dado o melindre das condições a que está exposto o “pessoal especialmente contratado”, a Agência de Acreditação do Ensino Superior e a Direção Geral do Ensino Superior estabeleceram limites máximos às contratações destas figuras. Além do limite aos contratos sucessivos, as IES que queiram lecionar licenciaturas e mestrados não podem ter mais 40% dos docentes contratados como convidados e as que querem estar autorizadas a lecionar doutoramentos não podem ter mais de 25% do pessoal docente nas categorias de convidado. No entanto as IES aprenderam a contornar os limites, umas vezes contabilizando o pessoal docente convidado pelo número de indivíduos e outras vezes pelo número de docente-equivalente-a-tempo-integral. Noutras ocasiões fazem o trabalhador saltitar entre contratos sucessivos diferentes para interromper ou iludir a contagem do tempo: a cada contrato ocupam uma categoria diferente ou uma percentagem contratual diferente ou mesmo alternam contratos anuais com semestrais.
Mas a inventiva das IES não descansa nem vê limites. Muitas aprenderam a arrastar bolseiros de doutoramento ou pessoas com contrato de investigador a termo certo para a assinatura de contratos como “assistente convidado a tempo parcial de 0%” ou professor auxiliar convidado a 0%” (sim, zero por cento). Com poderes encantatórios ou persuasivos suficientes, e promessas qb, conseguem um trabalhador capaz sem ter de remunerar o seu trabalho. E este pode trabalhar um número muito significativo de horas por semana mesmo estando a 0%. É certo que alguns contratos de bolsa ou de trabalho para a investigação científica estipulam que o trabalhador trabalha a tempo integral e regime de exclusividade mas não lesa o seu plano de trabalhos nem quebra a exclusividade se lecionar até 4 horas por semana numa disciplina da sua área de formação. Mas não dizem que aquelas 4 horas são gratuitas.
Ao meio sindical chegam de quando em vez relatos de IES que, para evitar os incómodos de contratar falsos convidados, contratam parte dos docentes sob a capa de conferencista prestador de serviços, pago a recibos verdes. Aqui nem se estabelece um vínculo, é uma mera prestação de serviços.
Os falsos convidados precários estão institucionalizados entre os professores dos Politécnicos e das Universidades graças ao abuso dos Estatutos por parte destas Instituições. Na maioria dos casos o abuso tem motivos orçamentais, mas também abundam as motivações relacionadas com a preservação de um contingente de trabalhadores subservientes à disposição e com o exercício do poder discricionário.
Estes são os precarizados entre os docentes do ensino superior.
A existência de um exército de falsos convidados que suporta o sereno funcionamento das IES é ainda usado pelas cúpulas destas para ali dissimularem os casos da “a família”. As figuras estatutárias dos docentes convidados são usadas para criar empregos de retiro ou de resguardo para indivíduos pertencentes a grupos de interesse influentes. Indivíduos que cumpriram missões sacrificiais ou com grande fidelidade ao grupo algures e previamente. Dependendo do relevo da sua missão, do poder do seu grupo, ou do desejo de o resguardar, podem ser contratados como Professor Catedrático Convidado a tempo integral, ou como Professor Auxiliar a tempo parcial. Se não forem titulares do grau de doutor, podem ser granjeados com a certificação de “reconhecido especialista” por parte do Conselho Científico da unidade orgânica que se sente compelida a contratá-lo, e assim são equiparados a Professor. O lugar pode ser mais ou menos dourado, mas regra geral está associado à lecionação de disciplinas opcionais e com poucos alunos inscritos.
“A família” também abusa da figura do pessoal especialmente contratado para recrutar rápida e discretamente indivíduos a quem quer conceder o privilégio de criarem um currículo prestigiante em pouco tempo, via trampolim, geralmente para ficarem em posição vantajosa num procedimento concursal vindouro ou para lhes facilitar o acesso precoce a altos cargos.
Como é fácil de entender, os dois perfis típicos da “a família” nada têm que ver com as agruras do dia-a-dia dos falsos convidados. São joio e trigo.
Texto original publicado no Escola/Informação n.º 306 | nov./dez. 2023