Artigo:Peniche, património da resistência ao fascismo

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Peniche, património da resistência ao fascismo

Sofia Lisboa

O trabalho historiográfico e museológico baseado em testemunhos e memória é uma tarefa do presente. Afirmar isto é desde logo contrariar um fenómeno que está em curso há várias décadas e que pretende fazer dos processos de patrimonialização um acto de “reparação” para com as vítimas de uma “herança difícil” e assim, de uma assentada, tomar o assunto por encerrado.

Pelo contrário, é importante notar que o património de uma comunidade não é uma herança fechada, material ou "imaterial" à espera de ser preservada, mas é composto por testemunhos de vários tipos que interagem com a posteridade e que se fabricam no presente, na forma como os vários actores continuam a praticar determinada militância ou partilhar referências culturais e políticas com aquilo que (re)lembram.

Os materiais disponíveis ou ainda potencialmente disponíveis para este processo de patrimonialização ter lugar implicam uma vontade política de contrariar o esquecimento natural (mas também deliberado), uma resposta imediata que tem uma dimensão de pesquisa, recuperação, interpretação e salvaguarda intimamente associada ao que se entende, em cada momento, como prioridades culturais e sociais. Assim, considera-se que proteger e tornar vivo e acessível, para as gerações actuais e futuras, um património que existe na medida em que é compreendido e "construído", é uma vantagem diante de um conflito em curso, que exige simultaneamente negociação e compromisso.

Aí reside o interesse em analisar os projectos de patrimonialização da memória que estão na origem dos chamados "museus de heranças difíceis", em diferentes contextos históricos e latitudes, particularmente no que diz respeito à memória da resistência e luta pela liberdade. Observando de perto as suas dimensões museológicas, construídas a partir de testemunhos, estes museus são de natureza precária e conflituosa, mas ao mesmo tempo profundamente ligados a movimentos sociais e políticos de grande importância, que não terminaram, cujas lutas são actualizadas e que continuam a motivar discussões metodológicas e conceptuais em museus um pouco por todo o mundo.

O Museu Nacional da Resistência e da Liberdade, em Peniche, resgatado pelas lutas do presente a um destino de obliteração, é um exemplo dessa batalha em curso.

A Importância da Memória

Quando a memória entra em jogo e desempenha um papel tão decisivo, não acreditamos que seja útil procurar qualquer "dever de neutralidade", particularmente no que diz respeito ao trabalho destes museus. Lembrar o fascismo e a resistência não pode ser neutro do ponto de vista do regime democrático que emergiu de um processo histórico que pôs fim à ditadura.

Desde que começámos a trabalhar neste tema, surgiu desde logo uma questão relacionada com as políticas públicas de memória e com a lentidão e desconforto que caracterizam o processo de preservação da memória do fascismo e da resistência em Portugal, e o que isso nos diz sobre a correlação de forças estabelecida após a revolução de Abril de 1974.

E também, na mesma medida, o que as mudanças mais recentes, como as que levaram à criação do Museu Nacional da Resistência e da Liberdade em Peniche, sugerem sobre essa mesma correlação. Embora o decreto-lei tenha sido publicado em 1976, este levaria 45 anos a sair do papel.

O Papel dos Museus

Então, que papel podem os museus desempenhar quando deixam de ser apenas um lugar para proteger e preservar "objectos valiosos"? Como se concretiza na prática a musealização de testemunhos conflituais? Através de que olhares se representa e em que circunstâncias se conserva uma memória?

Assim, pensamos que pode ser por intermédio destas instituições de memória - os museus - que se reflicta sobre a relação das sociedades actuais com a sua história recente, e em que medida são simultaneamente produto de uma tensão, de um conflito social e político, e espaço de encontro, mutuamente influente, com dimensões frequentemente ignoradas das relações interactivas entre sujeitos e comunidades com relações de poder assimétricas.

A visibilidade das memórias depende de quem as produz, os que fabricam os seus relatos do acontecido, uns sendo cristalizados e os outros tendencialmente silenciados. Uma das consequências das desigualdades de poder é, precisamente, que há grupos com melhores condições para impôr a sua versão do acontecido, e construir uma memória social, que “passa à história”, por ser ensinada por aqueles que gozam da autoridade para tal, que é transmitida pelos meios de comunicação dominantes, que se torna “a verdade”.

A patrimonialização da resistência em Portugal, o Forte de Peniche

Pensar os processos de patrimonialização da resistência em Portugal no século XX pressupõe interrogar os mecanismos de manutenção da memória colectiva e de disputa de uma memória pública.

A partir de 2016, um vasto movimento de opinião democrática opôs-se ao então anunciado propósito de ocupar a Fortaleza de Peniche com uma unidade hoteleira de luxo e, em contrapartida, sublinhou as desumanas condições ali enfrentadas pelos presos políticos, naquela cadeia que foi parte integrante do “cruel e poderoso aparelho repressivo do fascismo português”.

Na introdução da obra editada pela URAP sobre a Fortaleza, Domingos Lobo, jornalista, escritor e activista do movimento que dinamizou a petição «Forte de Peniche - Defesa da memória, resistência e luta», afirma que a consagração deste lugar de memória é fundamental, uma vez que “não bastam as palavras, precisamos da hermenêutica da História”, de verdadeiros “mecanismos materiais”. Para o antifascista, não bastava “um simulacro dessa realidade” ou “um qualquer monumento erguido no largo fronteiro ao Forte”, para “inscrever na memória colectiva 48 anos de privações, tortura, esbulho, abjecção”.

Levantando a questão do carácter simbólico ou ideológico do museu, Domingos Lobo confirma que a sua consagração é “uma opção ideológica vinda das correntes antifascistas da sociedade”, facto que é assumido “com orgulho” tanto mais que considera que “toda a acção cívica e cultural tem, na sua génese, uma vertente política e ideológica”, uma vez que “nenhum movimento social é inócuo.”

A 29 de Outubro de 2016 teve lugar uma acção de protesto e convívio convocado por um grupo de ex-presos políticos. Nessa ocasião, José Pedro Soares, ex-preso político e dirigente da URAP, afirmava que o Estado não se podia “alhear de contribuir para a preservação dessa memória, desse património”. Lembrando o caso da sede da PIDE, em Lisboa, convertida em condomínio de luxo na Rua António Maria Cardoso, apesar dos protestos e manifestações, o dirigente referiu que “nada sobrou para espaço de memória futura, para que permanecesse conhecido o registo das brutais atrocidades ali cometidas pela sinistra polícia política”. O “memorial” prometido não passaria de uma “pequena e despercebida placa que só quem nela tropeça talvez leia.”

Considerando que a Fortaleza de Peniche deveria seguir o rumo da cadeia do Aljube, o dirigente da URAP refere que milhares de pessoas visitam o Forte, entre eles alunos de escolas de vários pontos do País que, acompanhados pelos seus professores, ali vão conhecer “o que custou a liberdade”, pelo que a destruição dos antigos edifícios e a descaracterização do espaço seria “um atentado ao património histórico, um crime contra a memória colectiva do povo.”

Na mesma ocasião, Domingos Abrantes, ex-preso político e dirigente do PCP, lamentou que se tenham ali todos juntado “não para visitar e saudar a criação de um verdadeiro museu que honre a história da resistência”, mas para manifestar “preocupação e indignação pela intenção do Governo de concessionar a Fortaleza de Peniche”, dando continuidade ao que considera ser “toda uma política de muitos anos de apagamento da memória da resistência e, consequentemente, de apagamento e branqueamento da ditadura fascista que durante 48 anos oprimiu o povo português.”

Relativamente a lugares de memória fora do país, Domingos Abrantes lembra que “nenhum dos sucessivos governos, até hoje, apesar das muitas promessas, assumiu a sua quota parte de responsabilidade para conservar o Campo de Concentração do Tarrafal como local de memória da resistência, da repressão e da luta comum dos povos português e das ex-colónias, contra o fascismo e o colonialismo”.

Uma prisão para visitar e não para ficar

O museu foi inaugurado no passado dia 27 de Abril, 50 anos depois da libertação dos presos, com a presença (não incontestada) do presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa.

No catálogo da sua exposição principal, o então presidente do conselho de administração da empresa Museus e Monumentos de Portugal, Pedro Sobral, afirma que este se trata de um museu de perguntas. Um museu que foi “uma forma encontrada pelo Estado português de proceder a uma reparação simbólica das violações dos direitos humanos perpetradas por um regime autoritário e repressivo”.

Através dele deve sentir-se “desconforto”, por ser “um memorial em carne viva” e não “um fóssil do passado”, uma vez que “este lugar não acabou de dizer tudo aquilo que tem para nos dizer”. “Se a Resistência e a Liberdade não estivessem sob ameaça permanente, para quê dedicar-lhes um Museu?”, pergunta o presidente. Refere ainda as “muitas ambiguidades, muitas forças contrárias que coexistem no seu interior”.

Por sua vez, a directora do Museu Nacional Resistência e Liberdade, Aida Rechena, no mesmo catálogo, refere que esta instituição é criada “após um exigente processo de reivindicação social para evitar que fosse construída uma unidade hoteleira no antigo espaço da cadeia política”, e que assume como missão "investigar, preservar e comunicar a memória da Resistência ao regime fascista português, a partir dos testemunhos e experiências daqueles e daquelas que lutaram pela Liberdade e pela Democracia".

A directora afirma que este museu se posiciona como “um museu de Memória e um museu dos Direitos Humanos”, e que pretende ser “uma fonte de conhecimento, de investigação, reflexão plural, valorização, defesa e promoção de valores universais como a Liberdade e a Igualdade”

Quanto aos conteúdos apresentados, Aida Rechena sublinha que sendo a antiga cadeia “um símbolo maior da luta pela liberdade, levada a cabo pelo povo português ao longo dos 48 anos de ditadura fascista”, era fundamental que a primeira exposição fosse representativa, por um lado, “da luta desenvolvida e da repressão sofrida pelos presos políticos aqui encarcerados e pelas suas famílias” e, por outro, que fosse “uma homenagem aos múltiplos movimentos de resistência ao regime que, na sua diversidade, constituem efetivamente uma resistência dotada de objectivos, métodos, organização e recursos, com a finalidade de fazer cair o regime fascista português”.

Através de uma museografia “apelativa”, com recurso a “conteúdos simbólicos com grande poder de representação e veiculação de mensagens e sensações”, a exposição pretende assumir “um carácter pedagógico, de preservação da memória e da história a transmitir às gerações mais jovens e às futuras”, por forma a que “a ideia de uma Liberdade conquistada diariamente seja assumida como um desígnio contínuo”.

A instalação destes museus é, para aqueles que viveram a ditadura, um “virar de página”, um projecto em marcha que esperam “irreversível”. É um processo contínuo, como referem os vários intervenientes. Não sem levantar permanentemente questões sobre a concepção e o trabalho realizado nestas instituições. Conscientes do instrumento (frágil) que constituem e da disputa contínua que os envolve. Noutras palavras, são ferramentas a serem disputadas em si mesmas, por aqueles que querem usá-las e alcançar um determinado objectivo por seu intermédio.

Estas são iniciativas de importância inegável para o presente, porque o direito à resistência, transmitido às gerações que não passaram pelas condições mais adversas de privação de liberdade, é mais do que uma referência que faz parte da nossa cultura histórica, mas uma ferramenta para criticar e combater aqueles que pretendem fazer crer que a defesa da liberdade e do direito dos trabalhadores a lutarem por uma vida melhor já deixou de ser a tarefa mais importante de todos os democratas.

A autora escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico

Versão resumida publicada no Escola/Informação n.º 308 | maio/junho 2024