Artigo:Pacote Laboral - O plano inclinado do Governo

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Pacote Laboral - O plano inclinado do Governo

Lídia Bôto | Advogada SPGL
Pedro Nunes | Dirigente do SPGL

A negociação coletiva é um dos pilares do Direito do Trabalho português. A Constituição da República, no seu artigo 56.º, reconhece-lhe dignidade constitucional e o Código do Trabalho regula a forma como os sindicatos e as associações de empregadores podem transformar essa autonomia coletiva em normas jurídicas concretas.

Nas últimas décadas, a negociação coletiva tem enfrentado em Portugal um processo de fragilização progressiva, marcado por reformas legislativas que, sob o pretexto da modernização das relações de trabalho, têm paulatinamente enfraquecido o papel dos sindicatos e diminuído a efetividade das convenções coletivas de trabalho. O anteprojeto do novo Código do Trabalho, atualmente em discussão, confirma essa tendência e aprofunda-a, colocando em causa dois princípios estruturantes do direito coletivo: a autonomia coletiva e a relevância da filiação sindical.

A proposta da reforma laboral — designada “Trabalho XXI” — introduz alterações significativas neste equilíbrio. A nova redação do artigo 497.º permite que os empregadores apliquem uma determinada convenção coletiva à totalidade dos seus trabalhadores, desde que esta abranja mais de metade do efetivo ao seu serviço, “salvo oposição expressa do trabalhador não sindicalizado ou de associação sindical interessada relativamente aos seus filiados”.

A solução prevista abre caminho para que a contratação coletiva seja dissociada da representatividade sindical, permitindo que a negociação possa ser conduzida sem a mediação ou intervenção necessária das organizações sindicais. À primeira vista, pode parecer um mecanismo de flexibilização, facilitando a adaptação das convenções às especificidades das empresas; na prática, contudo, trata-se de um plano inclinado que ameaça os alicerces do direito coletivo: esvazia a função primordial dos sindicatos, reduz o peso da negociação coletiva e depaupera o equilíbrio de forças entre trabalhadores e empregadores.

Consequentemente, aumenta o poder patronal. Se a representatividade sindical se dilui, a parte mais forte da relação de trabalho vê reforçada a sua margem de manobra. Este movimento de “plano inclinado” — feito de pequenas alterações sucessivas que parecem técnicas mas têm profundas consequências políticas e sociais — coloca em causa não apenas as organizações sindicais mas a própria lógica da negociação coletiva.

Em Portugal, apesar de todas as dificuldades, a contratação coletiva de trabalho continua a ser o único instrumento capaz de assegurar aos trabalhadores benefícios reais, que ultrapassam a lei geral, e ,sobretudo, capaz de permitir a valorização e a construção de uma carreira. Sem ela, a relação laboral reduz-se ao mínimo legal, que dificilmente acompanha as necessidades de uma vida profissional digna.

A experiência mostra que onde a negociação coletiva é robusta os trabalhadores dispõem de melhores salários, horários mais equilibrados, mecanismos de progressão profissional e garantias de proteção em momentos de crise. Ao contrário, onde ela é enfraquecida prevalecem a precariedade, a estagnação e o individualismo, que beneficiam apenas quem detém maior poder negocial — quase sempre o empregador.

Para agravar esta última realidade junta-se a postura de certas organizações sindicais que, contrariando o que os seus estatutos determinam — a representação e defesa dos interesses dos docentes —, têm vindo a dar o braço aos empregadores, celebrando acordos que contribuem, cada vez mais, para a degradação das condições de trabalho, das remunerações e das carreiras destes profissionais nos setores privado e social. Exemplos disso podem facilmente ser encontrados no âmbito da contratação coletiva, tanto no ensino particular e cooperativo como nas IPSS e nas Misericórdias.

É por isso, que a reforma em discussão deve ser lida com muita prudência crítica. O discurso da modernização não pode servir de cortina para o enfraquecimento estrutural dos direitos coletivos. Se a Constituição reconhece aos sindicatos o papel de representação e de negociação, cabe ao legislador reforçar essa função, não esvaziá-la.

Portugal precisa de mais e melhor contratação coletiva, não de menos. Precisa de um direito coletivo robusto, que continue a ser um instrumento de equilíbrio e de justiça social. A erosão silenciosa desses mecanismos ameaça, não apenas os sindicatos, mas o próprio contrato social que deve sustentar um equilíbrio entre o interesse dos empregadores e os direitos dos trabalhadores.