Artigo:Os salvadores da pátria

Pastas / Informação / Todas as Notícias

Os salvadores da pátria

Na terça-feira passada um conjunto de personagens à procura de autor decidiu emitir uma espécie de manifesto reivindicando a formação de um ‘governo de salvação nacional’ ou de ‘emergência nacional’ ou de ‘unidade nacional’, ‘you name it’. Um deles, o eterno Santana Lopes que anda sempre por aí em busca de protagonismo, manifesta a grave preocupação que no atual contexto de emergência sanitária, económica e social “somos o único país que temos um governo minoritário” (DN, 3/2/2021). Não se entende este alerta do ex-político pré-aposentado das causas da direita, já que, perante o atual ordenamento constitucional um governo minoritário tem legitimidade política desde que não se demita ou seja demitido pelo Presidente da República ou então veja aprovada na Assembleia da República (AR) uma moção de censura.

Outro personagem, o jornalista Sousa Tavares, num artigo do semanário “Expresso”, reforça a sua candidatura a salvador da pátria lusitana com o argumento de que “os sinais de cansaço e incapacidade do primeiro-ministro” que só a sua perspicacíssima mente consegue detetar, exigem que o Presidente da República (PR) “sem dissolver o Parlamento”, protagonize – pasme-se – uma remodelação governamental que implicará a demissão de pelo menos metade dos ministros, baseada, sentenceia, “num único critério: competência e determinação para vencer a crise”, ou seja, numa palavra, uma espécie de Governo Mario Draghi à portuguesa, quando o contexto político do país é completamente diferente do italiano, onde o Governo Conte perdeu o apoio maioritário de que desfrutava.

A solução política proposta por Sousa Tavares e por outros esquece antes de tudo que a revisão constitucional de 1982 acabou com os governos de iniciativa presidencial, expediente muito utilizado pelo ex-Presidente Ramalho Eanes, pois o Governo é apenas responsável perante a AR e não também, como anteriormente, perante o Presidente da República. E mesmo nesse passado distante, alguns governos deste tipo acabaram por ser derrubados na AR por não terem apoio maioritário. Verdadeiramente peregrina, no entanto, é a ideia de que o PR pode imiscuir-se na formação do Governo ‘despedindo’ os membros que considera ‘incapazes’ ou ‘inaptos’, o que, no mínimo, não passa de uma enorme tontice definidora da personagem que a formulou.

 É certo que a Constituição da República Portuguesa (CRP) estipula no nº2 do artigo 195º que o PR “pode demitir o governo quando tal se torne necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas, ouvido o Conselho de Estado”. No entanto, não apenas tal funcionamento está em risco, mas também, dando-se o caso de o estar, a discricionariedade do poder que a CRP atribui ao PR neste âmbito – poder que deve ser seriamente repensado em futuras revisões constitucionais – exclui liminarmente a proposta de Sousa Tavares: neste caso, a demissão do Governo pelo PR implicaria ou eleições antecipadas ou a formação de um novo Governo com apoio maioritário na AR.

É caso para perguntar: perante estes atentados à inteligência política que revelam uma ignorância crassa, sincera ou simulada pouco importa, de uma CRP sob ataque da extrema-direita fascizante e neoliberal em ascensão, quem nos salva destes pretensos salvadores da pátria?

Joaquim Jorge Veiguinha