Artigo:Os horários dos professores - (por Ana Alves)

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Os horários dos professores - (por Ana Alves)

Sou professora há vinte e quatro anos e não estou na situação de contratada nem estou no desemprego; na verdade, encontro-me naquela que poderá considerar-se uma boa situação profissional: faço parte do quadro de professores efectivos de uma escola, situada relativamente perto de casa, onde exerço a minha profissão há vinte anos por opção.

E, no entanto, o que sinto ao iniciar este ano lectivo é uma profunda angústia. Receber mais um mau horário, que vai determinar todo o meu ano lectivo e a minha vida neste ano que nunca mais vou voltar a ter, é um choque psicológico de uma violência que só quem passa por esta situação pode imaginar.

Há uns anos, os professores tinham horas de redução aos quarenta anos; agora, aos quarenta e seis, vejo a minha carga horária aumentada a cada ano que passa. Leccionar seis turmas de Português do ensino secundário – sim, é uma disciplina exigente, fundamental, transversal, sujeita a exame e que temos de cumprir com uma carga horária mínima (três horas semanais, contra quatro e meia de Matemática, Geografia ou História, sete de Biologia e Física e até Espanhol, com aulas de turnos, por exemplo1) – leccionar estas seis turmas num total de 24 tempos de 45 minutos, com mais dois apoios de 50 minutos a alunos com necessidades educativas especiais, o que perfaz mais de 26 tempos (quase 1200 minutos), num horário em que as aulas estão espalhadas por oito turnos, deixando livres apenas uma manhã e uma tarde para o trabalho individual, é posso dizê-lo, um verdadeiro pesadelo.

Sempre gostei da minha profissão, que tive sempre de cumprir sem as melhores condições (devido à insuficiente carga horária da disciplina de Português, que implica também ter mais turmas que a maioria dos professores e demorar muito mais tempo a ver os testes), mas até ao ano passado ainda o pude fazer com dignidade, apesar do muito sacrifício pessoal de passar fins de semana a trabalhar para conseguir corrigir os muitos testes com o rigor e a competência com que me habituei a cumprir o meu trabalho. Agora, ao olhar para a carga e a mancha horária que me foi atribuída, o meu sentimento é “não consigo”, “já não sou capaz”. Ocorre-me informar-me sobre as licenças sem vencimento, por puro desespero.

Porque olhar para as cerca de trinta e duas horas que tenho de passar na escola, leccionando os vinte e seis tempos lectivos de aulas, é perceber que pela frente tenho mais um ano em que os obstáculos à realização do meu trabalho me vão impedir de cumprir com dignidade a minha profissão. Estar constantemente esgotado por excesso de horas de trabalho e impossibilidade de descansar e nos refazermos nas poucas horas que sobram ao fim do dia é perder a dignidade. Não poder preparar as aulas convenientemente para proporcionar aos alunos um estudo motivador é trabalhar sem dignidade. Ter de ocupar fins de semana após fins de semana para conseguir corrigir mais de cento e cinquenta testes de Português2 duas vezes por período escolar é viver sem dignidade.

A verdade é que é urgente olhar para os horários atribuídos aos professores, que estão totalmente sujeitos a receber ano após ano um horário em que são obrigados a passar sete a oito, às vezes nove, horas na escola, devido, não só aos tempos excessivos definidos pelo Ministério da Educação, inconsciente do que é reunir numa só pessoa muitos dos piores cenários - muitas horas de aulas, muitas e enormes3 turmas, vários níveis, furos no horário, muitos turnos (e há seguramente muito piores cenários do que o meu, eu apenas exponho o que no ensino é uma situação absolutamente regular) -, mas também à inconsciência de quem executa os horários e não percebe aquilo que eles significam, por total desconhecimento do trabalho dos professores.

Escrevo este texto, não porque tenha alguma ilusão sobre o facto de poder ser ouvida, pois, ao longo da minha vida profissional, habituei-me a ver sempre as coisas piorarem, ano após ano, mas porque me parece um dever expor publicamente aspectos que estão profundamente errados no ensino e que, parecendo pormenores, determinam a vida (muito dura) de muitos professores e, consequentemente, a qualidade do ensino.

Relativamente à situação que aqui exponho, o que seria correcto da parte do Ministério da Educação seria, na minha opinião, atribuir a execução dos horários dos professores a uma entidade externa, não permeável aos interesses instalados nas escolas.

Não se verificando essa situação, seria fundamental, diria mesmo urgente, estabelecer regras para a elaboração dos horários, nomeadamente:

- fixar, a nível nacional4, o número de tempos lectivos atribuídos a cada disciplina respeitando a especificidade de cada uma, e, em particular, reconhecendo de facto que o Português é uma disciplina estruturante e que o cumprimento de um programa extenso que inclui uma vertente teórica e uma outra prática exige uma maior carga horária semanal quer no ensino básico, quer no secundário; trata-se de uma medida absolutamente necessária para que a carga horária atribuída às disciplinas sirva verdadeiramente os interesses dos alunos e não outros e não se crie desigualdades entre alunos que, no final dos ciclos, fazem o mesmo exame nacional);

- atribuir duas horas de redução a partir dos 45 anos e não dos 50, ou limitar o número de horas efectivas de aulas a partir dessa idade, determinando que as duas restantes seriam obrigatoriamente ocupadas em horas de apoio aos alunos ou direcção de turma;

- limitar o número de horas de estabelecimento ao cumprimento do horário correspondente à redução da carga lectiva por motivos de idade (um professor com a totalidade da carga horária não deve ter horas de estabelecimento para além das previstas para reuniões);

- limitar o número de turnos atribuídos nos horáros dos professores a seis (um horário de um professor arruma-se muito facilmente em cinco turnos);

- eliminar a possibilidade de ter no horário tempos sem aulas ou “furos” no horário5; que outra profissão pára uma hora ou duas para retomar depois o trabalho, saindo mais tarde?

- ser o Ministério de Educação a determinar a organização dos tempos lectivos de todas as escolas, de acordo com os minutos que têm de ser cumpridos (para que um professor não tenha no seu horário tempos de 20, 45, 50, 60, 75 ou 90 minutos, no que só pode ser classificado como um caos).

Os professores não são missionários. São profissionais, na sua grande maioria, muito bem preparados e muito competentes. Se o ensino melhorou significativamente nos últimos anos (tal como tem sido provado através dos resultados nos testes do PISA), foi em grande medida graças ao seu empenho e dedicação. O único desejo que aqui deixo expresso (e que acredito ser partilhado pela generalidade dos meus colegas) é que voltem a dar-me condições para poder realizar o meu trabalho com qualidade e de forma digna. Só assim poderemos garantir a qualidade da educação que queremos proporcionar aos futuros cidadãos deste país.

Ana Alves

Notas:

1 Os professores destas disciplinas conseguem, se tiverem secundário, na maioria dos casos, completar o horário com apenas duas ou três turmas, o que significa muito menos alunos e, consequentemente, um alívio no trabalho individual de elaboração e correcção de testes e outros instrumentos de avaliação.

2 Corrigir os testes de Português, pela sua especificidade e acumulação de parâmetros e critérios de classificação, é uma tarefa morosa e esgotante quando, quase sempre, tem de ser executada sob pressão.

3 Turmas com mais de vinte e cinco alunos impossibilitam a realização de um trabalho com qualidade.

4 Neste momento, há a possibilidade de atribuir tempos mínimos e máximos.

5 Não há nas escolas condições para que o professor possa aproveitar os “furos” a preparar as actividades lectivas e isto quer dizer que, depois de ser obrigado a permanecer no seu local de trabalho mais tempo do que qualquer outro funcionário, o docente tem de preparar o trabalho do dia seguinte em casa. Não há gabinetes de trabalho, os computadores disponíveis são insuficientes e estão quase sempre ocupados, a sala de professores não tem mesas e cadeiras em número suficiente e é um local pouco recomendável para a saúde, pois é muito ruidoso.

O horário lectivo do professor é de 1100 min. Com a diversidade da duração do tempo lectivo, muitas vezes, os professores, entre uma aula e outra, têm um tempo de 20min. (que, na verdade, equivale a 45, 50 ou 60min. consoante a opção da escola). Ora, isto corresponde a retirar (desnecessariamente) minutos da componente de trabalho individual do docente.