Artigo:Os Contratados Anónimos - Ata nº 1 - 20.novembro.2012

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“Chamo-me Adriana Guerreiro e sou professora contratada.”

Assim poderia começar uma qualquer reunião de “contratados anónimos”, viciados em filas da Segurança Social, topo de uma pirâmide precária, muito mais precária do que piramidal… O desemprego teima em estar sempre por perto, lembrando diariamente que a “oferta” de escola é um presente do destino, mas nunca um futuro.

No ano transato, depois de concorrer a nível nacional e a mais de duas centenas de ofertas de escola, fiquei colocada já no final de outubro. Doze horas no horário já davam para matar a saudade, alimentar a paixão e deixar de me sentir tão inútil e imprestável, depois de nove anos de ensino a tempo inteiro. Continuei ainda assim a concorrer, porque nem só de saudade e paixão vive o Homem e não sou de me deixar ficar. Em novembro vi o meu horário preenchido com mais sete horas. Ora doze e sete, dezanove. “Nada mau!” – pensa o leitor.

Nestas dezanove horas contavam-se já umas quantas estreias. Seis horas de Português Língua Não Materna, outras seis de Português para Todos (ensino noturno a adultos estrangeiros), quatro horas de Educação Musical e três horas de Área de Projeto a um PCA. Tudo dividido por duas escolas (leia-se direção e gestão diferente, colegas de quem nunca cheguei a saber o nome, conselhos de turma, planos anuais de atividades, etc… O pormenor mais corriqueiro como pedir para tirar cópias com 48h de antecedência tornava-se, para mim, um desastre. Fui o pesadelo do pessoal das reprografias…). Tinha então aulas à tarde e à noite, preparando as aulas de manhã.

Mas um grave problema pesava no meu bolso e não se chamava dinheiro. Com doze horas tinha direito ao subsídio parcial de desemprego, que nos dá a diferença entre aquilo que a escola nos paga e o valor bruto de um salário que teima em encolher. Com dezanove horas, i.e., a faltarem três horas letivas para um horário completo, conside(ra)ram alguns iluminados que não se justificava tal subsídio. Nunca as palavras “mais trabalho por menos dinheiro” fizeram tanto sentido. Ora deu-se então o caso insólito de eu ter o dobro do trabalho e da despesa (acrescentando viagens de uma escola para outra, investimento em livros e outros materiais) e menos dinheiro a entrar na conta ao fim do mês.

E continuei a concorrer, a propósito, termo muito bem empregue. Alegria das alegrias! “Saiu-me” mais uma escola! Uma substituição por doença que me deixou com mais oito horas para ocupar as manhãs. Nada mais, nada menos, do que um 11º e um 12º ano de Português, às portinhas do exame nacional.

Contas feitas, para 310 dias de serviço, tivemos qualquer coisa como 3 escolas, 5 disciplinas diferentes com 7 níveis de ensino (o que requer preparação distinta), uma média de 250€ por mês em gasolina, um défice gigantesco de horas de sono e uma necessidade enorme de férias que, já que estamos numa de desabafar, vieram desfasadas com os finais graduais dos contratos. Refiro também, em tom jocoso, se quiserem, que nunca cheguei a perceber a razão pela qual não tive direito a subsídio de refeição em nenhuma das escolas (porque eram três contratos diferentes), mas para me tirarem o subsídio de natal “o patrão” já era o mesmo. Nunca cheguei a perceber por que tinha que justificar as ausências às reuniões marcadas semanalmente na escola A e B, quando estava a lecionar na escola C. E vice-versa. Multipliquem esta confusão por reuniões de notas, visitas de estudo, relatórios dos alunos e toda a papelada que nos fazem crer importante. Dei algum trabalho às secretarias e fui a alegria das gasolineiras…

O ano letivo acabou e, antes dele, os meus três contratos. Pronto. Assim foi. Vazio, não é? Se notam o corte no ritmo do texto, imaginem na minha vida!

Os números mostram apenas uma pequena parte da realidade, mas dão aquela credibilidade estatística que este país tanto gosta. Porque aquilo que se sente e deixa de se sentir ninguém quer saber. São pieguices. Mas sou piegas e faria tudo outra vez. Porque foi um ano (louco, é certo), de uma intensa (insana?) atividade intelectual. Porque conheci alunos que jamais esquecerei e porque sei que também terei ficado em alguns. Porque tive experiências novas e ganhei, só por isso. Porque os poucos colegas que conheci são amigos para a vida. Porque sou Professora.

Este ano estou colocada com onze horas apenas numa escola. Apaixonada já pelos novos projetos e pessoas envolvidas. E penso, com tristeza, que isto é apenas um jogo sórdido de quem conhece, afinal, os piegas ingénuos e apaixonados com quem pode contar. Só que as paixões aumentam mas a ingenuidade vai-se perdendo. Assim é a vida.

Ajudamos diariamente os nossos alunos a conquistarem “novos territórios”, e a isso chamamos orgulhosamente “crescer”. Tentemos então ser alunos de nós mesmos, já que insistimos em ser melhores professores que cidadãos.

E a luta, camaradas… A luta continua.

 

Adriana Guerreiro

Professora Contratada dos grupos 300 e 250. Direção do SPGL