Artigo:Opinião

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Vi o filme francês, cujo título em português é “Entre Muros”. Só por este título o filme já não seria mau. Equivalente a “Escola” a expressão “Entre Muros” traduz a solidão profunda dos que acreditam ainda que a escola, o ensino e toda a panóplia didáctica e pedagógica podem mudar o mundo, as pessoas e as injustiças do sistema. É com esta crença que o professor oscila entre o “fichismo”, o “amigo”, “ o que sabe”, “ o que tem o poder”, numa incapacidade inquieta e angustiada em encontrar o seu lugar. No final o filme transporta o sabor amargo de uma derrota pela boca de uma aluna: “ não aprendi nada”.

Indo mais longe e mais fundo, a tradução simbólica desta situação-problema reconduz-nos ao âmago de nós mesmos: a incapacidade de compreender que o mundo mudou e nós não. Talvez não se trate de incapacidade, mas de resistência. Tanto romantismo e idealismo nas nossas cabeças, expressos em mil e um argumentos pedagógicos, resiste a olhar o mundo agora.

Vem isto a propósito da situação vivida na educação. Também aqui, os professores correm o risco de vir a estar entre muros. Encurralados no seu próprio emaranhado de ilusões, de frustrações, entupidos pelas mensagens que tão dificilmente passam na sala de aula, descobrem de súbito uma força que os reenvia para as crenças antigas de mudar o mundo, as pessoas, a injustiça.

Do outro lado, o olhar cínico daquele que sabe que o mundo já não é o mesmo. As injustiças continuarão, a escola não muda as pessoas, o problema não é o analfabetismo, a iliteracia. O problema hoje é o crime, a delinquência, a droga, os inadaptados, enfim, a marginalidade. Ontem, há pouco tempo ainda (o nosso mundo), a escola era a norma e como tal situava-se no suave leito da normalidade. Era, enfim, uma “Escola Normal”. Porém, neste devir dos tempos, as coisas não se passaram como com o leito dos rios.

Não foi o leito que invadiu as margens, foram as margens que assaltaram o caudal. Progressivamente, o normal estreita-se, o marginal dilata-se.

O que fazer perante este estado de coisas que se insinua subrepticiamente, mas vertiginoso, a tal ponto que ainda não o compreendemos? Como fazer?

Irremediavelmente, os governos viraram-se para as margens, a escola pública deslocou-se. Transformou-se. A “normalidade” a pouco e pouco deixa de ser uma tarefa do governo. Aqui, com toda a carga de significações que os termos veiculam, a escola passa de “Normal” a “Inclusiva”.

No entanto, um olhar atento percebe que esta “inclusão” das margens só pode ser artificial. Eles, os das margens, continuarão excluídos, mas com a ilusão de que não são. Crêem que o sistema se ocupa deles. Ocupar-se.... nada mais importa do que isto. Iludir, iludir-se, numa multiplicação de manobras em que toda a gente finge acreditar.

Mesmo que, em substância, pouco se ensine e quase nada se aprenda aí.

Pois, não é claro já que a falsificação tornou-se, de facto, a categoria do sistema? Porquê estranhar “o milagre dos exames”? A ânsia de resultados?

Ortega e Gasset dizia que a função da escola é de falsificação porquanto criaria no aluno uma necessidade que ele realmente não tem: estudar. Porém, neste contexto, o professor ainda era aquele que, transmitindo o conhecimento e pela manifestação desse poder, poderia e deveria criar no aluno essa necessidade.

Hoje, a falsificação atingiu o conhecimento que no ensino secundário público se vai reduzindo, a pouco e pouco, à vaga e efémera condição de “oportunidade”. Neste lugar, o significado de “ser professor” dilui-se, torna-se patético e caricatural. Como o exprime bem o olhar desolado e impotente daquele professor do filme.

Daí que a mudança, que ainda não apreendemos na sua plena nitidez resida nisto: o professor do público não ensina, ocupa-se de crianças e adolescentes que dificilmente, alguma vez, serão alunos. E as escolas subtilmente vão-se transformando em prisões, lugares de contenção e refreio, travando a irrupção desgovernada da marginalidade.

É aqui que reside a impossibilidade de comunicação entre professores e ministério. Falam de diferentes escolas, de diferentes professores, de diferentes alunos. E essa diferença, entre o mundo antigo e o mundo actual, que fora dos muros já se pressente, pode bem comprometer os 100.000 professores a um ruidoso silêncio.

Há riscos sérios de, para além dos muros, ninguém ouvir nada.

Todos sabemos que milhões de portugueses vêm o seu futuro demasiadamente incerto, sentindo-se ameaçados em diferentes patamares de segurança. Contratos de trabalho precários, risco de despedimento, endividamento, ameaçam o legítimo direito a uma vida normal, regular.

Tudo leva a crer que a maior parte dos professores julga que esta multidão de humilhados e feridos na sua dignidade pessoal e profissional estarão solidários com a sua luta.

E se não estiverem?

Talvez não contem que estes, justamente estes, poderão virar-lhe as costas.

Porque, e isto ainda é normal, o desespero raramente produz sentimentos de solidariedade. Dele nasce, a maior parte das vezes, uma amálgama difusa e cega de emoções mesquinhas.

Provavelmente sentirão inveja pelo lugar do outro que julgam melhor.

Serão possivelmente estes que, do fundo do seu coração ressentido, vociferarão palavras amargas, primeiro em surdina depois a viva voz, contra os que têm emprego estável, contra os que têm férias, contra tudo o que interpretam como privilégio.

Se assim for, provavelmente aclamarão a ministra. Como é costume, nestas situações de aperto, possivelmente louvar-lhe-ão a aparência de autoridade e firmeza. E, talvez, desgraçadamente, dêem de novo a maioria ao PS.

O que fazer, então?

Com amargura e, admito, pessimismo, creio bem que os professores do ensino secundário público estão mesmo encurralados. Entre muros.