Artigo:O regresso da ortodoxia monetarista

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O regresso da ortodoxia monetarista

Em maio, a taxa de inflação atingiu 8,6% nos EUA e 8,1% na zona euro. A Reserva Federal norte-americana (FED) subiu a taxa de juro de referência em 0,75% na quarta feira. Por sua vez, o Banco Central Europeu (BCE) já anunciou que na próxima reunião de julho aumentá-la-á 0,25% e que uma subida mais significativa poderá ser estabelecida em setembro. A maior parte dos analistas não tem escondido o seu regozijo ao proclamar que a era dos juros baixos está a chegar ao fim.

As baixas taxas de juro foram responsáveis, é certo, pela crise 2007-2008, conhecida por crise das hipotecas de alto risco (subprime), resultante da especulação imobiliária e da irresponsabilidade bancária que esteve na sua origem: concessões de empréstimos hipotecários sem garantias a famílias sem capacidade para reembolsá-los. As taxas de juro muito baixas contribuíram também para desvalorizar fortemente os depósitos a prazo dos aforradores mais cautelosos, pois aproximaram-se tendencialmente de zero em contraste com uma taxa de inflação baixa, mas mesmo assim mais elevada, reforçando as aplicações financeiras de maior risco que alimentaram os movimentos especulativos do capital dinheiro. Por outro lado, a política de compra de títulos pelo BCE com vista a aumentar a liquidez permitiu que os países periféricos da zona euro, de que se destaca Portugal, pudessem financiar as suas dívidas públicas a juros reduzidos. No entanto, esta política, chamada quantitative easing, promovida pelo anterior Presidente do BCE, Mario Draghi, foi incapaz de reduzir as assimetrias entre os países da zona euro mais endividados e os menos endividados, contribuindo apenas para ocultá-las debaixo do tapete. Assim, o diferencial das taxas de juro dos países mais endividados relativamente às taxas de juro alemãs não tem parado de subir, o que empurra para cima os custos do seu financiamento. No caso de Portugal, as taxas das emissões de dívida a 10 anos ultrapassaram na terça-feira os 3%, quando em dezembro do ano passado eram negativas e no início deste ano atingiam apenas 0,5%. Por sua vez, o diferencial das taxas de juro portuguesas relativamente às taxas de juro germânicas passou de 0,6% do início do ano para 1,2% na terça-feira, o que corresponde a um aumento de 100%. Não são seguramente boas notícias para o país.

A subida das taxas de referência provocou uma queda do valor das ações e paralelamente um aumento da rendibilidade dos títulos de dívida pública que corresponde à desvalorização do seu valor nominal, o que prejudica sobretudo os investidores possuidores de títulos de dívida antigos que não os conseguiram vender a tempo, registando perdas. A venda maciça destes títulos nos mercados financeiros é uma prova de que estamos provavelmente no fim de um ciclo. Porém, esta nova conjuntura tem servido de pretexto para o retorno dos arautos da ortodoxia monetarista que nunca viram com bons olhos as políticas de quantitative easing do BCE de Mario Draghi consideradas muito ‘expansionistas’. Assim Willem Buiter e Ann Sibert, docentes nas universidades de Columbia e Londres, defendem que “o necessário abrandamento económico deve ser implementado mais cedo ou mais tarde” (Público, 13-06-2022). Ou seja, sem eufemismos, é necessária uma recessão para baixar a inflação. No mesmo sentido, se pronuncia Daniel McFadden, prémio Nobel de Economia que ensina na universidade de Berkeley: “A este ponto os bancos centrais têm a capacidade de determinar o curso dos acontecimentos: para evitar a temida estagflação, ou seja, a combinação de recessão com a inflação muito complicada de vencer quando se tenha iniciado, poderiam verdadeiramente provocar uma recessão global, aumentando as taxas de juro de modo mais forte do que o previsto. A redução global da atividade, como aconteceu no início da pandemia, provocaria matematicamente a queda da inflação” (Espresso, 22-05-2022).

O que caracteriza estas posturas é considerarem praticamente como inevitável uma recessão para o controlo da inflação. Dispensam-se, no entanto, de refletir sobre as causas específicas da inflação atual. Na área euro a taxa de inflação sem os preços da energia e dos alimentos é de 3,5%, um valor significativamente inferior aos 8,1% que deveria ser tomado em conta nas projeções. Tal significa que estamos sobretudo perante uma inflação proveniente da oferta em consequência do aumento dos preços da energia e dos alimentos provocado pela guerra na Ucrânia. A isto se acrescenta, o poder económico das grandes empresas num mercado assimétrico de concorrência imperfeita de transferir para os trabalhadores e os consumidores os aumentos dos preços da energia e dos bens de subsistência que entram na reprodução do valor da força de trabalho. Neste contexto, aumentos significativos nas taxas de juro apenas contribuirão para o regozijo há muito esperado dos setores mais fundamentalistas do capital financeiro e dos partidários da ortodoxia monetária do BCE que ressurgem assim das cinzas, podendo gerar, em contrapartida, uma recessão mais profunda do que a prevista pelos que ignoram ou fingem ignorar as causas específicas da forma atual de inflação. Mais uma vez se prova que as sanções impostas à Rússia em consequência da invasão da Ucrânia são totalmente ineficazes, não tendo impedido que as tropas invasoras continuem a avançar na região do Donbass com a iminente tomada da cidade de Severodonetsk. O rublo valorizou-se e o aumento dos preços da energia e das subsistências tem favorecido claramente a Rússia em detrimento do resto do mundo. A ortodoxia monetarista, as multinacionais e os produtores de armamento agradecem.

 

Joaquim Jorge Veiguinha