O Princípio de Lampedusa
O departamento de Assuntos Orçamentais do Fundo Monetário Internacional (FMI) dirigido pelo ex-ministro das Finanças de Passos Coelho, Vítor Gaspar, está aparentemente muito preocupado com os elevados níveis de desigualdade na repartição da riqueza social que se agravaram nos países mais desenvolvidos no contexto da atual pandemia. São referidos os “lucros excessivos” de algumas empresas e os elevados rendimentos provenientes de heranças ou de rendas das famílias mais ricas que nos últimos anos através de uma contabilidade fiscal ‘criativa’ têm escapado à tributação. Como as economias avançadas em crise necessitam de financiamento urgente para encetarem o caminho da recuperação, aquele departamento propõe “aumentar a progressividade da tributação sobre o rendimento e aumentar a sua dependência face a impostos sobre as heranças e doações, bem como aumentar a tributação sobre a propriedade” (Fonte: DN, 8.04. 2021). A mesma política deve ser seguida relativamente aos “lucros empresariais excessivos”, embora não se especifique que setor económico gera tais superlucros. Uma coisa é certa: não será certamente o setor das pequenas e médias empresas submetido à santificada ‘livre-concorrência’, enquanto o setor oligopolista lhe escapa.
Não deixa de causar espanto que aqueles que num passado muito próximo atacaram a progressividade fiscal e tributária, considerada quase como um crime de lesa majestade, surjam agora como campeões da justiça fiscal. O exemplo mais fidedigno é o do próprio diretor do departamento dos Assuntos Orçamentais do FMI que em 2012 foi autor de uma reforma fiscal que reduziu a progressividade dos impostos diretos através da diminuição do número de escalões do IRS – passaram de 8 para 5 –, abaixando o limite superior do escalão mais elevado, o que na prática se traduziu num enorme aumento da carga fiscal sobre os rendimentos médios e médio-baixos e num relativo desagravamento sobre os rendimentos mais elevados. “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”? Não tanto assim.
Antes de tudo, como o documento não cessa de referir, tudo aponta que sejam medidas circunstanciais para acudir a uma situação de emergência económica e social, nada nos garantindo que, passada à tempestade, retornem as políticas de competitividade fiscal, ou seja, o nivelamento por baixo dos impostos sobre os lucros que continuam na maior parte dos países a ser tributados a uma taxa única que se aplica tanto aos oligopólios que escapam à tributação pagando quantias irrisórias – veja-se os gigantes do capitalismo digital, os principais beneficiários desta crise – como às pequenas e médias empresas que vivem com cada vez maiores dificuldades. E o mesmo juízo se poderá aplicar às rendas e heranças: os sacrifícios que estiverem dispostas a aceitar terão a justa recompensa no futuro. Além disto, face à estratégia de elisão fiscal que beneficia os grupos mais poderosos e para a qual o documento não propõe medidas concretas, o aumento da progressividade fiscal e tributária, embora louvável, revela-se cada vez mais ineficaz, pois basta um punhado de países, como os Países Baixos, o Luxemburgo e a Irlanda na zona euro, excogitar um sistema fiscal ‘competitivo’ para atrair capitais e atribuir um certificado de isenção fiscal aos superlucros oligopolistas.
Hoje mais do que nunca é imperioso atacar as desigualdades na própria fonte, ou seja, na esfera da pré-distribuição antes da incidência dos impostos diretos, pois as medidas fiscais redistributivas numa época de liberdade absoluta de circulação de capitais são manifestamente insuficientes. Mas isso implica medidas bem mais profundas que visem limitar os privilégios proprietários dos grandes grupos económicos e financeiros, bem como criar uma infraestrutura pública digital alternativa aos colossos cibercapitalismo. Como defende o investigador Evgeny Morozov, a inteligência artificial deve ser desmercantilizada e considerada um bem público, pois constitui, tal como a saúde e a educação, um recurso estratégico primordial para o funcionamento e o bem-estar das sociedades modernas. Caso contrário, as medidas propostas pelo departamento de Assuntos Orçamentais do FMI limitar-se-ão a ser a enésima confirmação do princípio de Lampedusa: “Se queremos que tudo continue como está, é preciso mudar tudo”.
Joaquim Jorge Veiguinha