O Mundo em crise
Na 76ª Assembleia Geral das Nações Unidas, António Guterres sublinhou seis ameaças que o atual mundo pandémico terá que combater e debelar no futuro próximo: o assalto à paz, as alterações climáticas, o abismo profundo que separa ricos e pobres, a desigualdade de género, a fratura digital e a desigualdade entre gerações.
Este catálogo deixa-nos apenas uma sensação de ‘dejà vu’. De facto, já desde a crise das hipotecas de alto risco (subprime) o mundo da globalização neoliberal padecia destes males. A única diferença é que não só se agravaram, mas suscitaram, fenómeno inédito, uma reação ‘indignada’ dos defensores do capitalismo realmente existente. Assim, o Fundo Monetário Internacional já defende o aumento da progressividade fiscal e das despesas sociais, enquanto a OCDE, grande defensora das políticas austeritárias, defende políticas orçamentais expansionistas no seu último relatório, apesar dos receios relativamente aos sinais de retoma da inflação. Mariana Mazzucato, economista ‘mainstream’ escreveu recentemente um livro significativamente intitulado “Mudar o Capitalismo”. Tal como o vírus do Sar Cov-2 sofre mutações para se conservar, também o capitalismo realmente existente se rendeu, entretanto, ao princípio de Lampedusa para enfrentar as ameaças que tendem a debilitar a sua reprodução alargada: “Se queremos que tudo continue como está, é preciso mudar tudo.”
Vivemos atualmente num mundo turbulento em que o descontentamento e as revoltas se multiplicam por toda a parte. Citemos alguns exemplos elucidativos: segundo o Institute for Economic & Peace, os confrontos com a polícia aumentaram 251% na última década; a ONG Armed Conflict Location & Event contabilizou 5000 confrontos em 158 países e 51 549 distúrbios e manifestações a nível global de 2000 a março de 2021; a Maplecroft, uma firma especializada na análise de riscos globais, considera que 40 países registam um sério risco de instabilidade nos anos vindouros, destacando-se o Irão, Myanmar, República Democrática do Congo, Egipto e Turquia; na América Latina, as desigualdades não param de crescer, com especial destaque para a Colômbia onde o PIB caiu 6,8% em 2020, 2,8 milhões de pessoas estão mergulhadas na indigência e o governo reprimiu violentamente as manifestações contra o aumento da carga fiscal sobre as classes médias e médio-baixas de que resultaram 50 mortos, o que não suscitou uma palavra sequer de indignação dos tradicionais defensores dos direitos humanos tão lestos em condenar as manifestações de 11 de julho contra o regime cubano de que não resultaram vítimas mortais (Fonte dos dados: “El País”, 12.09.21). Em 2022, prevê-se uma desaceleração do crescimento económico mundial, o que terá provavelmente consequências destrutivas sobre o emprego. Nem sequer a Europa escapa da ‘zona de turbulência”. De acordo com as projeções da OCDE, as maiores economias da zona euro não conseguiram recuperar da quebra no PIB registada no ano passado: na Espanha, o Produto deve crescer apenas 6,8% em 2021 contra um decréscimo de 9% em 2020; A França deve contentar-se com 6,3% relativamente a uma queda de 8% em 2020; a Itália não deverá conseguir mais do que 5,9% em comparação com os 9% negativos do ano precedente; a Alemanha, símbolo máximo das políticas de austeridade, transformou-se no parente pobre neste novo cenário, pois deverá conseguir apenas uns parcos 2,9% contra uma queda de quase 5% no ano passado.
Para completar este edificante quadro a Evergrande, uma mega-empresa imobiliária chinesa, entrou num processo de falência com uma dívida de mais de 250 mil milhões de euros, valor astronómico, que supera largamente o PIB português, e que poderá ter consequências a nível global. E a propósito de astronomia, ultramilionários, como Jeff Bezos e outros, realizaram uma viagem espacial por puro divertimento e para explorarem um ramo de negócios que se tornará provavelmente na indústria de bens de luxo do futuro, enquanto centenas de milhões de pessoas em todo o mundo, em que se incluem muitas crianças, submetidos ao fardo do sobretrabalho, não conseguem satisfazer as suas necessidades básicas. Perante a indiferença atávica dos poderes dominantes, e parafraseando Voltaire, “Laissez aller le monde comme il va, car si tout n’est bien tout est passable”. “Deixa que o mundo esteja como está, pois se nem tudo está bem, tudo passará”. “Tudo passará”? Tudo indica que não.
Joaquim Jorge Veiguinha