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O impacto silencioso da Reforma Laboral no Emprego Público, no caso da Educação
Lídia Bôto | Advogada
A discussão em torno do programa “Trabalho XXI” tem sido apresentada como uma reforma centrada na competitividade das empresas e na modernização do mercado de trabalho privado. Porém, esta leitura é parcial. O alcance real da reforma vai muito além das empresas e estende-se a todo o setor público, incluindo a escola pública, devido às inúmeras remissões que a LTFP faz para o regime de trabalho de direito privado. E esse impacto, apesar de grande, tem passado quase despercebido no debate público. Esta transversalidade é quase ausente no debate público.
O Código do Trabalho define o mínimo comum de proteção laboral e estabelece a matriz a partir da qual todos os regimes especiais — públicos e privados — evoluem. O que se altera no Código do Trabalho não permanece circunscrito às empresas; torna-se o novo padrão nacional de direitos laborais, influenciando a interpretação e o desenvolvimento futuro de estatutos profissionais e convenções coletivas. Uma redução de proteção no privado traduz-se, inevitavelmente, na descida generalizada das condições laborais no país.
No domínio da educação, esta realidade adquire especial relevância. Os vários estatutos como o ECD; o ECDU; o ECDESP ou o ECIC, embora constituam um regime especial, integram múltiplas matérias que dependem diretamente do Código do Trabalho ou de princípios que dele emanam — como, por exemplo, a parentalidade, a segurança e saúde no trabalho, o regime de faltas justificadas, e a proteção da parentalidade.
Assim, qualquer redução de direitos no setor privado — por via do “Trabalho XXI” — baixa o referencial de proteção do trabalho no país, influenciando também a interpretação e evolução futura dos estatutos das carreiras docentes e de investigação. Uma revisão que flexibilize o tempo de trabalho ou contenha direitos de conciliação no privado pressiona inevitavelmente a revisão dos regimes especiais, incluindo o dos docentes do ensino público.
Neste sentido, sempre que que o Código do Trabalho é alterado, por exemplo, o regime de licenças parentais ou redefine o conceito de falta justificada, cria um novo referencial que condiciona inevitavelmente o modo como os próprios estatutos profissionais são interpretados.
No ensino privado, o efeito é ainda mais direto e imediato. As convenções coletivas de trabalho (CCT) que regulam o ensino particular e cooperativo, o ensino profissional, o ensino artístico especializado ou o setor social estão ancoradas no Código do Trabalho. Sempre que o legislador privado altera normas base — tempo de trabalho, descanso, parentalidade, teletrabalho, presunções de laboralidade — estas mudanças repercutem-se, não só nas relações de trabalho em vigor como condicionarão os direitos dos trabalhadores na futura negociação coletiva.
Por isso, flexibilizar direitos no setor privado significa, na prática, flexibilizar direitos no setor público, abrindo espaço à redução de tempos de pausa, à reorganização mais agressiva dos horários, à ampliação das janelas de adaptabilidade e ao reforço dos mecanismos unilaterais de gestão do empregador.
A LTFP remete para o Código do Trabalho em matérias tão sensíveis como a parentalidade, o teletrabalho, a segurança e saúde no trabalho, o trabalho suplementar ou a igualdade de género. Sempre que o legislador mexe nestes domínios no setor privado, o espelho reflete-se diretamente no setor público — salvo quando existe norma especial na LTFP, o que é excecional. Portanto, no ensino público, mesmo existindo os estatutos, como os aqui referenciados, o impacto indireto é inevitável, porque o regime geral cria o padrão nacional das condições de trabalho.
Um dos exemplos mais claros é o da parentalidade. Toda a disciplina das licenças, dispensas e faltas assenta no Código do Trabalho. Se o “Trabalho XXI” alterar a duração das licenças, as condições de dispensa para assistência a menores ou o regime de amamentação, o efeito será imediato para os docentes do setor privado e repercutirá política e juridicamente no ensino público, condicionando, inclusive futuras revisões dos estatutos.
Outro ponto crítico é o teletrabalho. Embora no ensino público o teletrabalho tenha um impacto limitado, a LTFP remete para o Código do Trabalho na definição das condições de prestação, direitos associados e formas de reversibilidade. No ensino privado, estas regras têm aplicação direta, especialmente no ensino profissional, artístico e universitário, onde as direções já recorrem a modalidades híbridas em contextos específicos e com bastante incidência no ensino universitário público.
Mais discretas, mas igualmente relevantes, são as alterações previstas no domínio da segurança e saúde no trabalho. A atualização das obrigações de avaliação de risco, formação e proteção incide tanto sobre escolas públicas como privadas, onde os riscos profissionais — agressões, doenças infectocontagiosas, cargas físicas e emocionais — são significativos.
Também a redefinição das presunções de laboralidade terá impacto nos múltiplos vínculos precários existentes no ensino privado, desde formadores contratados a recibos verdes até técnicos especializados em áreas artísticas ou tecnológicas. Uma alteração do limiar da presunção reconfigura o risco jurídico das instituições privadas, podendo incentivar a externalização de serviços, o que já ocorre em larga escala.
A reforma laboral é, portanto, muito mais do que uma revisão do quadro do trabalho privado. Trata-se de uma transformação transversal que incidirá também sobre o ensino público, influenciando direitos, deveres, carreiras, organização pedagógica e condições reais de trabalho dos docentes. Uma reforma silenciosa, mas de enorme alcance, que deve ser discutida à luz da sua verdadeira dimensão: a de uma alteração estrutural ao modo como Portugal regula o trabalho — todo o trabalho — e, em particular, o trabalho docente.
Texto original publicado no Escola/Informação Digital n.º 47 | novembro/dezembro 2025