Artigo:O eterno retorno do assédio no ensino superior, André Carmo, in Público de 18/04/2023

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O eterno retorno do assédio no ensino superior

Não sou especialista em assédio nem jurista. O chapéu com que escrevo este artigo de opinião é o de atual coordenador do Departamento do Ensino Superior e Investigação do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa e, sobretudo por isso, observador atento do atual panorama da academia portuguesa, em particular das instituições de ensino superior e do seu funcionamento.

Aquilo a que temos assistido nos últimos dias, a reboque do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, revela já um dos principais defeitos das instituições de ensino superior: uma enorme incapacidade para se olhar ao espelho e enfrentar, de forma consequente, aquilo que vê refletido. E isto em nada colide com o reconhecimento de que as instituições de ensino superior são hoje, como foram no passado, espaços onde a reflexão crítica e o questionamento podem e devem ter lugar.

Procurando ser mais preciso, aquilo que pretendo dizer é que, num contexto em que salta novamente para a esfera pública a problemática do assédio em contexto laboral, rapidamente e em força se procura limitar o debate ao campo restrito do assédio sexual (a excessiva pessoalização também não ajuda). Estou convencido de que, por um lado, isto é uma forma de condicionar a discussão, desvalorizar as denúncias e a reparação de os danos causados e, por outro, de continuar a adiar a reconfiguração profunda, estrutural e sistémica, das instituições de ensino superior no sentido do aprofundamento da sua democratização. Dar mais voz e poder a quem não o tem.

Não estou de forma alguma a desvalorizar o assédio sexual e os seus efeitos nefastos. É um atentado à dignidade de pessoas que são, quase sempre, mulheres. Um atentado abjeto. Só por ignorância ou má-fé se pode negar tamanha evidência. A humilhação, o medo e a vergonha, a culpabilização e o isolamento, que tornam extremamente difícil a denúncia, são inaceitáveis. O assédio sexual é útil para reduzir, afastar ou acantonar uma pessoa em ambiente de trabalho. Tem uma face patológica, uma moral mas também uma laboral.

Mas é preciso também discutir o assédio moral que faz parte do dia-a-dia das instituições de ensino superior. Afinal de contas, onde há poder, desigualdade, assimetrias e hierarquias rígidas – e sabemos bem que, se o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente – existe um ambiente propício aos abusos de poder, à subserviência e à vassalagem, à inferiorização e ao amesquinhamento. E não devem existir muitas instituições mais hierarquizadas que as do ensino superior, estando eu convencido, pela experiência que a atividade sindical me vai dando, de que a situação é pior nas universidades do que nos politécnicos. O respeitinho ainda é muito bonito e quem se recorda da célebre tirada de Almeida Santos – um Professor Doutor de Coimbra, meu Deus! – sabe do que estou a falar.

Onde a precariedade laboral se enraíza e reproduz, onde a endogamia é um endemismo estrutural, onde a noção de carreira está ameaçada e o seu desenvolvimento é obstaculizado e gerido de forma pouco transparente, onde concursos para ingresso ou promoção são negociados por portas travessas, onde a colegialidade está ferida de morte, a concentração de poder se acentua e a delinquência académica campeia, estranho seria se, de forma insidiosa e capilar, não se instalasse confortavelmente o assédio – tal como entendido nos termos do Código do Trabalho.

Não seria mau que, sem oportunismo nem autos-de-fé, sem andarmos todos movidos ao ritmo vertiginoso das redes sociais e do seu permanente e torrencial fluxo informativo gerador de indignações sucessivas, mas antes com sentido de oportunidade e audácia, se procurasse transformar as instituições de ensino superior. Reformar onde é possível, revolucionar onde for necessário.

A inexistência de mecanismos eficazes para que as instituições de ensino superior lidem com o assédio é um rotundo fracasso que devem corrigir com máxima brevidade. Presumo que no quadro da sempre tão alardeada autonomia seja sua e só sua a responsabilidade pelo estado a que chegámos. Quaisquer soluções, que devem procurar agir a montante do problema e evitar a sua ocorrência, precisam de assegurar de forma incondicional a segurança e a proteção das vítimas e de quem tem a coragem de denunciar este tipo de situações.

As recentes declarações da Ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior são, ao mesmo tempo, surpreendentes e infelizes. Por um lado, não pode deixar de causar enorme perplexidade que alguém que faz do combate à desigualdade de género uma das suas grandes bandeiras governativas se apressou a varrer para debaixo do tapete o problema, revelando uma inesperada insensibilidade. Como assim, não há represálias? Por outro, num gesto de paroquial miopia, fugiu a uma leitura sistémica e estrutural do problema do assédio e refugiou-se naquilo que conhece da instituição de ensino superior a que está vinculada. Apetece perguntar: para que raio serviu o roteiro realizado em todo o país para conhecer mais de perto as várias instituições do sistema de ensino superior português!?

Por fim, a participação ativa e empenhada de toda a academia no processo de revisão do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior, constituiu também uma oportunidade para se poderem corrigir algumas das disfunções institucionais geradoras de ambientes propícios ao assédio. Desperdiçá-la seria um erro. Não resolverá tudo, mas abre um campo de possibilidades que a academia mais progressista não pode deixar de aproveitar para forçar o aprofundamento democrático das instituições de ensino superior. Com mais e melhor democracia e menos concentração de poder existe menos espaço para o abuso e para o assédio.

Se tudo isto não passar de mais uma explosão de indignação e fúria, perde-se uma oportunidade para ajudar a construir uma academia diferente, mais democrática e justa, uma academia melhor.

André Carmo
Professor universitário e dirigente do SPGL/FENPROF

Público 18 de abril 2023