Artigo:O espectro de Pinochet paira sobre o Chile

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O espectro de Pinochet paira sobre o Chile

Suponhamos que a Constituição portuguesa de 1976, elaborada após eleição por sufrágio universal de uma Assembleia Constituinte, tivesse sido rejeitada por um referendo. Permaneceria em vigor a Constituição do Estado dito ‘Novo’ de 1933, cujos parágrafos 2 e 3 do artigo 20 aboliam as liberdades democráticas com vista a “impedir preventiva e repressivamente a perversão da opinião pública” e a autorizar a “prisão preventiva, sem culpa formada, em flagrante delito” nos crimes contra a segurança do Estado.

Foi isto o que precisamente aconteceu com a Constituição do Chile alternativa à da ditadura fascista de Pinochet rejeitada por um referendo no passado domingo. Em 2020, 78% dos chilenos, após as revoltas (‘estallido’) de 2019 violentamente reprimidas pela polícia, decidiram ser necessária uma nova constituição que fizesse justiça ao regime democrático. Em 2021, foi eleita uma Assembleia Constituinte composta por 154 membros, mas, ao contrário do que aconteceu em Portugal, em 25 de abril de 1976, a nova constituição foi submetida a um referendo, o que é um manifesto absurdo, pois só as constituições antidemocráticas se referendam ou são outorgadas, como aconteceu com a do Estado dito ‘Novo’ português.  Resultado: a ‘nova’ constituição foi rejeitada com 61,87% votos contra, 38,13% a favor, 1,54% nulos e 0,59% brancos. O sufrágio foi obrigatório.

Na constituição da ditadura de Pinochet a educação, a saúde e a segurança social eram privadas, o que tinha estado na origem do ‘estallido’ de 2019. O texto constituinte inverte, logo no seu preâmbulo, esta ordem de coisas, ao defender que “O Chile é um Estado Social e Democrático de direito. É plurinacional, intercultural, regional e ecológico”. Ao reconhecimento dos direitos sociais, juntam-se a proteção do ambiente com restrições à exploração mineira nos glaciares e pântanos áreas que passariam a estar sob proteção pública, a igualdade de género e a integração no todo nacional dos direitos coletivos dos povos indígenas submetidos a uma bárbara repressão que remonta aos tempos do colonialismo espanhol.

Desde logo, após o texto estar concluído e ter sido tornado público, se fizeram ouvir as vozes dos interesses instalados. Os economistas neoliberais traçaram um quadro catastrófico para sustentabilidade financeira do Estado no caso das medidas sociais com vista ao estabelecimento de um sistema de pensões públicas e à construção de habitação social serem aprovadas; os industriais ligados ao setor mineiro, o Chile é um dos maiores exportadores de cobre, manifestaram-se contra as medidas ecológicas consideradas ‘contraprodutivas’; outros defenderam que o reconhecimento dos direitos coletivos dos povos indígenas contribuiriam para a divisão e fragmentação do país, uma manifesta tontaria que tem em Portugal alguns adeptos que invocam em defesa dos seus pseudoargumentos os princípios da Revolução Francesa de 1789, esquecendo que, atualmente, é totalmente inaceitável, como já defendia Marx em A Questão Judaica – era bom que o lessem, em vez de cantarem de galo e dizerem disparates – contentarmo-nos com uma cidadania abstrata que exclui a diversidade do Outro. Esta gente reflete um conservadorismo proveniente da Guerra Fria do século passado que não pode já ter lugar no século XXI.

O Presidente chileno Gabriel Boric decidiu retomar o processo constitucional interrompido. “Temos” – declarou – “uma segunda oportunidade para poder abolir a Constituição de Pinochet e provavelmente será a última. Desta vez não podemos falhar” (La Repubblica, 6. 09. 22). No entanto, e para que tudo fique bem claro, como defendeu a antiga Presidente da República chilena, Michelle Bachelet, que votou pelo sim, “é prioritário que entendamos que há pontos em que não devemos retroceder, como são a igualdade, a participação, o meio ambiente e os direitos de todos e todas” (El País, 5.09.22).

Não ponho em dúvida que há que respeitar a decisão do ‘povo soberano’, embora este seja, ao contrário do que defendem os adoradores acríticos do Estado político saído da Revolução Francesa de 1789, uma entidade cada vez mais alegórica, membro de uma soberania fictícia, irreal sem nenhum poder real. Por isso, o que triunfou no Chile não foi o alegado povo soberano, mas uma mera democracia formal sem dimensão social já defendida por Milton Friedman, prémio Nobel da Economia defensor da ditadura militar de Pinochet.

Joaquim Jorge Veiguinha