O Direito das Nações à Autodeterminação
Em 6 de outubro de 1922, Lenine escreve uma carta a Kamenev em que defende a sua posição sobre constituição de uma federação de repúblicas socialistas autónomas e livres e manifesta a sua clara oposição à hegemonia da Rússia no comité executivo central onde deveriam estar representadas todas as nacionalidades do novo Estado resultante da Revolução de Outubro de 1917: “Declaro guerra ao chauvinismo grão-russo: é necessário afirmar do modo mais categórico que o Comité executivo central da União será presidido, alternativamente, por um Russo, um Ucraniano, um Georgiano, etc. Digo-o da forma mais categórica possível” (Fonte: Lewin, Moshe – Le Siècle Sovietique, Paris: Fayard/Le Monde Diplomatique, 2003, p. 42, existe uma tradução portuguesa).
Na sequência do seu extraordinário escrito de 1914, O Direito das Nações à Autodeterminação, que se tornou um texto inspirador dos movimentos de libertação colonial, Lenine defende explicitamente contra Estaline, o ditador georgiano defensor do centralismo grão-russo que ele detestava, que na nova União das repúblicas socialistas em constituição cada uma delas deve dispor de direitos iguais e em particular do direito à autodeterminação.
Putin contesta esta posição de Lenine, defendendo o plano de Estaline que tentou com sucesso estabelecer um modelo de autonomias muito limitadas no seio de um Estado hipercentralizado na base da hegemonia russa. O atual Presidente da Rússia defende que “Lenine criticou este plano e propôs fazer concessões aos nacionalistas, aos nezavissimti (independentistas) como se dizia na altura”. Putin contesta-o também por ter integrado Donbass na Ucrânia e reconhecer explicitamente o direito à autodeterminação dos povos que integraram a União das Repúblicas socialistas: “Por que transferir [esses imensos territórios] com população da Rússia histórica? Além disso ofereceram a essas entidades administrativas o estatuto e o aspeto de formações estatais nacionais? Por que seria preciso dar presentes tão generosos, com que os nacionalistas nem sequer sonhavam, e por que dar a essas repúblicas o direito de sair de um Estado unificado sem as mínimas condições” (Fonte: Público, 23 de fevereiro 2022).
A resposta de Lenine é indubitavelmente a resposta correta: precisamente por que todas as nações têm o direito à autodeterminação e à independência. A Ucrânia partilha estes direitos com as outras, pelo que a tese Putin de que a “verdadeira soberania da Ucrânia só é possível em parceria com a Rússia” não é credível, já que cabe ao povo ucraniano decidir democraticamente o seu destino político. Por outro lado, são inaceitáveis posições do tipo aut-aut, embora estas estejam hoje na ‘ordem do dia’: “Ucrânia, ou te integras no Ocidente ou te integras na Rússia”.
O reconhecimento pela Rússia da independência das repúblicas separatistas de Donetsk e de Lugansk na região de Donbass no leste do país e o envio de tropas russas para a região de Donbass para alegadamente as defenderem é também inaceitável e uma clara violação do direito internacional. Esta defesa de duas repúblicas secessionistas, por mais ‘populares’ que se proclamem, acabou com os acordos de Minsk que reconheciam a sua autonomia no seio do Estado ucraniano.
É preciso ser muito claro numa coisa: o reconhecimento do secessionismo das repúblicas de Donetsk e Lugansk nada tem a ver com a posição de Lénine sobre o direito dos povos à autodeterminação e independência. Certamente que os antecedentes da gravíssima situação que se vive atualmente no Leste da Europa exigem uma análise mais aprofundada deste conflito que remonta a 2014, data em que o Presidente pró-russo da República ucraniana, Yakunovytch, eleito democraticamente em 2010, foi destituído de uma forma sumária pelo Parlamento ucraniano por ser alegadamente incapaz de exercer o seu cargo. Por detrás desta destituição, estão os protestos da praça Maidan que provocaram 98 mortos e milhares de feridos e levaram à ocupação de ministérios em Kiev, a capital ucraniana, o que tende a configurar esta destituição como um golpe de Estado que os EUA e a União Europeia (UE) apoiaram tacitamente, segundo o princípio de que quando os nossos adversários políticos estão no poder é legítimo ‘suspender’ a democracia.
É de sublinhar o apoio explícito dos norte-americanos Viktor Yuschenko e a Yulia Timoshenko, Presidente e primeira-ministra da Ucrânia entre 2005 e 2010, na sequência da chamada Revolução Laranja, uma revolução pacífica iniciada em 2004. O primeiro, defensor do alinhamento da Ucrânia com as potências ocidentais e a NATO, foi recebido e homenageado como como um herói em terras do Tio Sam. Ao contrário do que não dizem a maior parte das fontes ocidentais, a Ucrânia estava na altura extremamente dividida, já que, segundo sondagens realizadas em novembro de 2013, antes dos acontecimentos da praça Maidan, 39% da população ucraniana, maioritariamente concentrada no oeste do país, apoiava a entrada na UE, enquanto 37%, maioritariamente originária da parte leste, defendia uma união aduaneira com a Bielorrússia, o Cazaquistão e a Rússia. Deve ter-se ainda em conta que o leste e o sul do país têm uma maior densidade populacional e que Donetz é a segunda maior cidade da Ucrânia, logo depois de Kiev.
No entanto, os antecedentes que conduziram aos acordos de Minsk agora abolidos não podem de modo algum ser utilizados como uma forma de legitimação do secessionismo das repúblicas separatistas pró-russas de Donetz e Lugansk, como muito bem referiu José Milhazes numa entrevista ao DN de quarta-feira. Por isso, só existe uma alternativa: cessar fogo imediato na Ucrânia e o reconhecimento do inalienável direito do povo ucraniano de decidir livre e democraticamente o seu próprio destino político sem condicionamentos e imposições de espécie alguma, como defendia Lenine. Grandes potências fora da Ucrânia.
Joaquim Jorge Veiguinha