Artigo:No interior da solidão dominante, no país dos abandonados, Domingos Lopes, in O Chocalho de 20/06

Pastas / Informação / Opinião

No interior da solidão dominante, no país dos abandonados

De repente os que têm governado o país descobriram que o interior está desertificado, sem gente, sem serviços, com a agricultura abandonada, sem futuro.

É extraordinário. Os que têm governado desde 1976 até 2015 e nunca saíram dos cinquenta quilómetros da faixa do litoral e só agora na triste luta política em torno dos incêndios, descobriram o interior… Que andou a fazer Mário Soares? Cavaco? Sampaio? Durão?  Guterres? Sócrates? Passos Coelho?

Alguns fizeram auto estradas que davam para exportar, mas os camiões vinham de lá para cá e eram poucos os que iam para lá.

Este modelo de desenvolvimento impulsionado pelo marcelismo e desenvolvido nos anos que se seguiram ao 25 de Abril de 1974 é o responsável pelo estado de coisas atual.

Que bem que fala Fernando Negrão a proclamar a  necessidade de dar atenção ao interior. A viagem dele e dos seus pares devia ser ao interior das suas consciências e deixar de fazer de conta que o abandono não é obra sua também.

Mesmo Marcelo Rebelo de Sousa que foi líder do PSD nunca falou do interior como fala agora. Falhou à frente do PSD. Foi-se. Dava mergulhos no Tejo para ver se ganhava a Câmara de Lisboa e não mergulhava no interior. Descobriu-o agora. Mesmo como comentador omnipresente pouco ou nada falou do interior. Claro, mais vale tarde que nunca. Sem dúvida. Mas caramba, os filhos têm nome e os pais é que lhes dão os nomes. Este é o tipo de desenvolvimento que Cavaco apoiou entusiasmado cortar vinhas e olivais, o abandono do interior. Não há memória? Ponham as mãos no interior das consciências; deixem-se de pantominices.

A criação de uma burguesia compradora que investiu em hipermercados e similares levou grande número de agricultores à ruina. Importar para vender no Pingo Doce, no Continente, no Intermarché, no Mini Preço… Telefonar, encomendar e vender. Este é o mote. Campanhas publicitárias agressivas. Grandes promoções. E aqui estamos. Por obra e graça de quem governou e dos que no tecido económico apoiaram esta política.

É quase como aquelas e aqueles que por tudo e por nada falam dos valores da família, só que é para família ver, pois os horários de trabalho, as distâncias entre o local de residência e o posto de trabalho  e os ritmos não deixam tempo para a família. É um faz de conta, tão em moda neste país a cair para o mar e desertificado no seu interior.

Como se pode imaginar que os jovens fiquem no interior onde nasceram, se, ali, olhando em volta, só veem velhice? Se não têm onde arranjar um emprego digno? Se os municípios sãos maiores empregadores… Se até se fecha estações de correios, e até os balcões da CGD… Se os hospitais estão a dezenas e dezenas de quilómetros… Se os exames médicos estão à mesma distância, se a saída é emigrar ou ir para a polícia ou para as Forças Armadas? Como podem falar em coesão social, se o Estado não investe no interior? Se Bruxelas do alto do seu potestas não o permite e o governo amoucha porque é assim a nossa vidinha de mão estendida a ver se este ano, os Comissários, espécie de sátrapas persas, cortam menos porque, como diz Marcelo, somos bons alunos. E como disse Santos Silva, devíamos dar graças a Deus porque podia ser pior…

Em breve será muito pior. O número de votos cairá brutalmente e onde não há votos, não há investimento. Porque falam quando deviam calar-se no interior das sua vergonha?

É uma dor de alma viajar para o terreno da solidão dominante. É revoltante querer fazer dessa solidão dos abandonados, criados por políticas sucessivas rotuladas de sucesso, arma de arremesso, como no caso dos incêndios. Triste vida. Triste sina.

Texto publicado no Público online