Artigo:No atoleiro neoliberal, Carvalho da Silva, in JN 31/12/2022

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No atoleiro neoliberal

Os governos capazes de resolver grandes problemas com que se deparam as pessoas e os países não são suportados por maiorias absolutas, mas sim por compromissos entre forças políticas portadoras de programas diferenciados, dispostas a uma trabalhosa negociação contínua.

O seu êxito depende de dois suportes fundamentais: i) haver um programa de conteúdos substantivos em benefício das pessoas, o passo inicial que gera na sociedade e na economia confiança e estabilidade; ii) levar ao limite a análise crítica sobre as margens de manobra a utilizar nos espaços políticos interno e externo. Entre 2015 e 2018, tivemos uma experimentação ténue dessa possibilidade.

Quando uma maioria absoluta é marcada por fatores circunstanciais - como aquela que o Partido Socialista e António Costa conquistaram em janeiro de 2022 - e tomada para uma governação feita ao sabor de contextos de circunstância, num taticismo contínuo, a estabilidade é posta em causa e a confiança esvai-se.

A falta de um programa político estruturado e coerente dá lugar a compromissos desfocados da realidade, que nada ou pouco dizem às pessoas e à economia, como é hoje o caso do tão encenado Acordo de Concertação Social. Por outro lado, se o primeiro-ministro surge em permanente manobrismo tático, os governantes agem de forma desconexa e entregues à gestão mediática das suas agendas.

O facilitismo da maioria levou para governantes atores politicamente medíocres, enfraqueceu a análise crítica, a atenção à transparência e fiscalização dos atos políticos. O PS assumiu uma atitude de desconsideração da Esquerda, que provocou uma sucessão de estilhaços e fragilização da sua ação. E os episódios ocasionais e populistas transformados em "factos" políticos servem para corroer a democracia e minar as funções do Estado social de direito democrático. O episódio Alexandra Reis expôs todo o emaranhado de armadilhas que nos cercam.

Dirigentes da Direita e extrema-direita surgem hipocritamente estupefactos com a escandalosa "indeminização" que lhe foi atribuída, ou com o saltitar de lugar em lugar que lhe foi propiciado. Ora, no mundo empresarial privado essas práticas são o pão nosso de cada dia. O mérito e a excelência atribuídos a "gestores excecionais" (casta que se apoderou do direito do trabalho e só se motiva com retribuições pornográficas) têm a mesma origem que vemos no caso da ex-secretária de Estado: "coragem" para eliminar direitos laborais e reduzir salários, transferir gastos privados para faturas públicas, propiciar os maiores ganhos imediatos aos acionistas, mesmo hipotecando o futuro das empresas. Todos os dias, os neoliberais insistem em levar esta cartilha para dentro do Estado, para que este possa "atrair os melhores" e ser "eficaz".

Se António Costa não definir um programa e der qualidade ao Governo, o descontrolo prosseguirá. No imediato, teremos reforço do fundamentalismo orçamental, diminuirá a atenção a setores estruturais da economia como a ferrovia, a aposta na qualificação e na ciência reduzir-se-á a propaganda, agravar-se-á a desvalorização dos salários e pensões. A Direita continuará a não ter de expor as políticas que tem em gaveta: basta-lhe a multiplicação de "casos" e um presidente da República que os sabe espremer bem.

A governação de circunstância não permite articular as dimensões jurídicas, éticas e políticas dos problemas e desagua no atoleiro do neoliberalismo.

*Investigador e professor universitário