Artigo:Na “máior”, Sr. Ministro

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Na “máior”, Sr. Ministro

O Ministro das Finanças, Fernando Medina, considera que as informações disponíveis “apontam para que este ano possamos ter a confiança que seja um ano turístico robusto possivelmente acima dos níveis acima de 2019” (DN, 15.04.2022). Quem viaja quotidianamente, como o autor destas linhas, em transportes públicos já sente a diferença relativamente a 2020. Os dados oficiais confirmam este ‘feeling’. Assim, nos dois primeiros meses do ano registaram-se 2,2 milhões de hóspedes e 5,4 milhões de dormidas no país. Em fevereiro, os 1,2 milhões de hóspedes registados representaram um aumento de 507% relativamente ao mesmo mês do ano passado, enquanto as 2,9 milhões de dormidas totalizaram um aumento de 527,1% no mesmo período. Consequentemente, os preços da habitação começaram a disparar. Assim, o rendimento médio por quarto ocupado atingiu 68,3 euros em fevereiro, mais 44,8 euros de que o mês homólogo do ano passado. Como este afluxo turístico vai provavelmente continuar em euforia, os preços da habitação nas principais cidades em que predomina, ou seja, quase todas situadas na zona costeira de norte a sul do país, vão também provavelmente subir. Segundo as últimas divulgadas notícias pelo canal 1 da RTP na quinta-feira desta semana, o preço das casas aumentou 48% entre 2017 e 2021. Eufórico, porém, o ministro Fernando Medina. Quando questionado sobre este novo ‘boom’ turístico numa conferência de imprensa no início da semana passada disse meio a brincar, meio a sério “não me venha dizer que há turistas a mais” (DN, 14.04.2022). Tudo na “máior”, Sr. Ministro, como dizem no Porto, a sua cidade natal.


Também na “máior” estão aos vistos ‘gold’, Sr. Ministro. Assim, no ano passado, a aquisição de imóveis na Área de Reabilitação Urbana de Lisboa atingiu 923,1 milhões de euros, tendo os estrangeiros ricos adquirido 1767 casas. O valor médio por operação desta forma de turismo de luxo urbano foi superado pela primeira vez no país: meio milhão de euros, mais precisamente 523 mil euros, segundo uma notícia do DN do início da semana passada. Ao que tudo indica, os investidores estrangeiros têm mostrado também um enorme apetite pelos ‘resorts’ de luxo. Um exemplo ilustrativo: entre Troia e Melides, uma zona paradisíaca, esta outra forma de o turismo de luxo apostou na construção de um empreendimento perto da praia da Aberta; os lotes das 360 vilas exclusivas com o lema “o novo luxo do turismo é a exclusividade” começaram a ser vendidos a 10 milhões de euros. Sem dúvida, Sr. Ministro, continua tudo “na máior’, porque os ‘ricos e famosos’ têm indubitavelmente, um direito inalienável à privacidade. Porém, como deve saber, estes não podem, por enquanto, excluir os índios – como o autor destas linhas e a maior parte dos cidadãos nacionais que não vivem em ‘resorts’ de luxo, mas em reservas, em que o direito à privacidade sofre sérias restrições, sobretudo quando está submetido não apenas à ‘tortura’ quotidiana do alojamento local, mas também à má qualidade de construção de apartamentos sem nenhuma insonorização – do acesso ao espaço público das praias, apesar de se multiplicarem naquela região vedações e muros com o objetivo de conter o “assalto” dos índios às “zonas de excelência”, assim criadas pelos grandes empreendimentos imobiliários para desfrute de alguns. Mais a sul na costa alentejana e particularmente em Odemira, mas também em Serpa, multiplicam-se as estufas onde trabalhadores estrangeiros pobres são sobreeexplorados e alguns até escravizados, o que verdadeiramente não constitui um problema, Sr. Ministro, já que, como refere justamente o sociólogo Elísio Estanque, tal é encarado “como um custo a pagar de um setor que revitaliza a economia portuguesa” (i, 20 de abril de 2022). Que belo “modelo de desenvolvimento”: em geral, continuamos todos na ‘máior’, Sr. Ministro, com o PIB a crescer  acima da média europeia no período pós-pandémico, o que terá efeitos positivos sobre as contas públicas que Vossa Excelência – desculpe o tratamento ‘cerimonioso’, mas estou atualmente sob a influência da leitura do excelente romance de Camilo Castelo Branco, “A Queda de um Anjo”, em que este tratamento é recorrente – tem a responsabilidade de gerir neste momento difícil que a maioria dos cidadãos nacionais está a viver.


Resta-nos descer às reservas onde vivem ou sobrevivem os índios, Sr. Ministro. Vossa Excelência, perdoe-me, teve um lapso de memória, isto é, por outras palavras, esqueceu-se na sua euforia perante o turismo de massa e provavelmente do outro, de referir que os índios, isto é, por outras palavras, os indígenas, estão a ser expulsos em massa já não para as periferias, mas para as zonas periurbanas ou ainda mais longe – o  oceano Atlântico é o limite –, porque não podem comprar ou alugar uma casa nas zonas urbanas em que prolifera a especulação imobiliária que acaba por transformar o centro das grandes cidades e arredores num ‘resort’ de luxo,  a que se acrescenta o ‘resort’ do alojamento local, que Vossa Excelência tentou, a meu ver tardiamente, controlar no final do seu mandato de Presidente da Câmara de Lisboa. Mas entre os índios destacam-se os mais pobres entre os pobres, ou seja, aqueles que segundo a Constituição da República Portuguesa deveriam ter direito a uma habitação condigna, mas não o têm efetivamente. Em Portugal, num conjunto de 243 autarquias nada mais nada menos do que 63 068 famílias vivem numa situação de carência habitual grave, de acordo com números oficiais citados no excelente artigo do engenheiro civil José Carlos Guinote, o que acaba por representar, como este refere, uma inaceitável e escandalosa “disponibilidade social para aceitar níveis tão elevados de pobreza e desigualdade” (Público, 19.04. 2022), ao mesmo tempo que crescem e proliferam os condomínios de luxo e outros empreendimentos turísticos.
Na sua moção de recandidatura, o secretário-geral do PS, o seu camarada António Costa, atual Primeiro-Ministro do Governo em que Vossa Excelência se integra, garantiu que “em 2024 todas as famílias terão direito a uma habitação condigna” (DN, 11.04. 2022). Ao que tudo indica tal foi apenas uma manobra da ‘marketing’ político, um dos grandes talentos do Primeiro-Ministro e da maioria do partido que representa, já que o seu colega responsável pela habitação, Pedro Nuno dos Santos, admitiu ser pouco exequível a realização deste objetivo programático, pelo menos naquela data. Uma última notícia, pois o artigo já vai longo. A sua pírrica derrota nas eleições de 2021 para a maior autarquia do país, em que entregou de bandeja o poder à direita política coligada, acabou, porém, por beneficiá-lo na medida em que ascendeu na hierarquia política, tornando-se paradoxalmente, segundo a terminologia institucional, “Ministro das Finanças de Portugal”. Dois anos antes, ainda Vossa Excelência era autarca, foi encontrado sem vida um ator português numa das muitas tendas da avenida 24 de julho que abrigavam muitas pessoas que não podiam comprar nem alugar uma casa ou mesmo um quarto em Lisboa.


Retive na memória, apesar de já terem passado três anos, o comentário simultaneamente amargo, mas certeiro de uma colega de profissão do falecido, cujo nome lamento não saber, a um diário da capital, O Inevitável, mais conhecido por i: “Vivemos todos neste país de merda e alguns até se sentem orgulhosos”. O orgulho que se abstrai destas trágicas e inaceitáveis situações neste país da ‘Europa connosco’ não deve ser provavelmente partilhado por si e pelo seu Governo, Sr. Ministro, mas como dizem os italianos, “non si sa mai” (“nunca se sabe”). No entanto, este triste evento e as declarações de Vossa Excelência que anunciam que o ‘esprit de finesse” da política não é provavelmente o seu ponto forte, para além de revelarem que não começou muito bem o seu mandato governativo, são apenas a ponta de um titânico icebergue que prova, decididamente, que nem todos, mas apenas alguns poucos estão na “máior” neste país das maravilhas à beira mar plantado, não é verdade, Sr. Ministro? Não se preocupe: este é o ‘socialismo’ que a maioria dos cidadãos que sufragou e continua a sufragar a integração do país na União Europeia e sobretudo na zona Euro merece com a sua pretensa vocação europeísta.

Joaquim Jorge Veiguinha