Artigo:Loucura autocrática

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Loucura autocrática

Erdogan pretende acelerar em 2022 a construção do novo canal de Istambul. Trata-se de uma estrutura gigantesca de 45 Km, que demorará cerca de 6 anos a construir, para ligar o mar Negro ao mar de Marmara. Terá capacidade para 160 navios por dia e correrá paralelo ao actual estreito do Bósforo. Em 2021 foi lançada a primeira pedra de uma das 16 pontes e viadutos que atravessarão o canal.

Erdogan já chamou a este novo canal “o meu projecto louco”. É um dos vários “projectos loucos” que o Presidente turco tem defendido e concretizado, como o túnel sob o Bósforo, o enorme novo aeroporto de Istambul e a ponte sobre o estreito de Dardanelos (que liga o mar Egeu ao mar de Marmara).

Há várias razões para estes projectos megalómanos. Antes de mais, Erdogan quer a Turquia reconhecida como potência mundial. Para isso, tem vindo a equipar o país de grandes infra-estruturas com impacto mundial. Por outro lado, a economia turca está dependente em cerca de 20% do sector da construção civil. Estes grandes projectos dinamizam a economia e Erdogan sabe que só assim os turcos continuarão a apoiá-lo. Outro motivo para estas obras estruturantes é gerar uma teia de interesses entre grandes consórcios de construção civil, que ficam dependentes de Erdogan. Há muitos anos que o Presidente turco utiliza estes agrupamentos de empresas a seu bel-prazer, controlando assim os sectores-chave da sociedade e da economia.

Este canal artificial de Istambul é apresentado como alternativa ao estreito do Bósforo, que é muito sinuoso e perigoso e gera longas e lentas filas de navios. O grande problema do estreito do Bósforo é ser uma das vias marítimas mais concorridas do mundo: passam por ali cerca de 50.000 navios por ano (nos canais do Panamá e do Suez transitam entre 12.000 e 17.000 navios por ano), o que provoca constantes estrangulamentos e onerosos atrasos. Por ser mesmo estreito, a circulação neste canal é alternada e, em períodos de mau tempo, a lista de espera pode arrastar-se por semanas. Além disso, há outra particularidade: apesar de dividir Istambul ao meio, o estreito do Bósforo é internacional, serve vários países do mar Negro e é regulamentado pela convenção de Montreux (que impede, por exemplo, a passagem de navios de guerra que não sejam dos países que marginam o mar Negro). A Turquia não tem jurisdição marítima sobre o estreito do Bósforo e não pode barrar a passagem de navios pelo meio da sua capital. Ora, o novo canal será totalmente controlado pelo Estado turco, podendo usá-lo como convier aos seus jogos políticos. Sendo a Turquia membro da NATO, isto levanta preocupações à Rússia porque permitirá a passagem de navios da NATO para o mar Negro, pondo em causa o poder da imensa frota russa aí estacionada.

Este canal também levanta a questão económica — ninguém sabe como poderá ser financiado (25 000 milhões de euros) —, dada a situação calamitosa da economia que já levou grande parte da população turca ao limiar da pobreza. Erdogan tem tentado financiamento na China, Catar, Emirados e Arábia Saudita, sem sucesso, até agora.

Por fim, há o impacto ambiental. O mar Negro é especial e único por ser anóxico a grande profundidade e ter uma circulação de água muito peculiar, pelo que ambientalistas e peritos em circulação oceânica dizem que a construção do novo canal pode ter consequências desastrosas sobretudo para o mar de Marmara e para o mar Egeu, pois provocará um influxo de água anóxica para Sul, funcionando como um sifão que sugará águas poluídas do mar Negro para o Mediterrâneo. Acresce que o canal será construído a Oeste de Istambul, numa área florestal com fontes de água que abastecem a cidade desde o século XVII. Esta zona de Istambul, onde Erdogan projecta construir o canal, é também zona de barragens, de vastos recursos hídricos e de floresta, perto do novo aeroporto de Istambul que já destruiu o grande pulmão verde da cidade. Este canal, em conjunto com os múltiplos empreendimentos de luxo a construir nas suas margens, toda uma nova cidade, irá acabar com os recursos hídricos e a cintura de floresta que ainda resistem. Tudo isto acirra a oposição que diz que, se um dia chegar ao governo, cancelará o projecto do canal. A acreditar nas últimas sondagens, tal poderá acontecer já nas eleições presidenciais de 2023.

Francisco Martins da Silva