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Jogar com o tempo

Cinco dias depois de se ter retirado do acordo de exportação de cereais da Ucrânia, com o pretexto de que o corredor humanitário tinha sido utilizado pelas tropas ucranianas para atacar a esquadra russa em Sebastopol, a Rússia voltou a reintegrá-lo. Entretanto, o regime de Putin continua com os bombardeamentos e os ataques de drones, ao que tudo indica fornecidos pelos seus aliados teocráticos do Irão, tendo como alvo infraestruturas essenciais ucranianas, de que se destacam as centrais energéticas e as barragens. 80% dos consumidores de água de Kiev já foram afetados e 350 mil utentes sofreram já cortes de energia. A estratégia dos invasores visa o desgaste da população ucraniana à medida que o inverno, muito rigoroso naquelas paragens, se aproxima.

Tudo aponta para que a Rússia de Putin aguarde ansiosamente o resultado das eleições intercalares norte-americanas da próxima terça-feira. Atualmente, o Partido Democrático é maioritário na Câmara dos Representantes (220-212) e está empatado no Senado (50-50), valendo-lhe, no entanto, o voto de desempate da vice-presidente Kamala Harris. As estimativas atribuem a vitória ao Partido Republicano em ambas as Câmaras: probabilidade de 82% na primeira e de 51% no segundo. Uma vitória republicana poderá suscitar uma viragem no apoio militar dos Estados Unidos à Ucrânia. O líder da atual minoria do GOP, Kevin McCarthy, já afirmou que o Congresso deixará de “passar cheques em branco” à Ucrânia, posição reforçada pela extrema-direita trumpista do partido cada vez mais maioritária que defende mesmo a supressão do apoio. Por sua vez, no campo do Partido Democrático, 30 dos 100 membros da chamada ala esquerda do partido subscreveram um documento em que solicitaram ao Presidente da República que, juntamente com o apoio militar, protagonize um “esforço diplomático proativo que redobre as possibilidades de negociação realista com vista a um cessar fogo” (Público, 27. 10. 22).

É, no mínimo caricato, que esta corrente progressista do Partido Democrático fale em “negociação realista” com um país agressor, que violou a soberania de um outro, já lhe amputou uma parte do seu território e continua com a sua agressão bélica com vista a quebrar a resistência de um povo que sem a ajuda militar já se tornaria tornado uma colónia do país invasor. Perante a reação da maioria do partido, os subscritores do documento já retiraram a sua proposta. Toda a amputação do território ucraniano pelos russos constitui uma legitimação da invasão e do princípio de que o crime compensa, pelo que a única ‘negociação realista’ possível é a retirada russa dos territórios ocupados, o cessar fogo imediato, a indemnização devida aos ucranianos pela obra de destruição maciça perpetrada pelas tropas invasoras da Federação Russa e o julgamento por um Tribunal Penal Internacional dos crimes de guerra cometidos. Não existem outras alternativas, pois nesta guerra não há lugar para os bons samaritanos do pacifismo abstrato que são objetivamente cúmplices do país agressor nesta guerra.

O regime de Putin tem a seu favor o passar do tempo. O seu objetivo é fragmentar o apoio militar à resistência ucraniana, única forma de vencer um conflito de que é o exclusivo responsável. Numa Europa sem capacidade militar autónoma e fortemente dependente da importação de petróleo e gás russo, a situação tende a ser mais favorável cada dia que passa aos propósitos belicistas da autocracia russa. O arrastar do conflito está por detrás de uma inflação que não para de crescer. Os aumentos crescentes do preço dos alimentos e sobretudo do gás natural criam as condições para que uma parte da população europeia se vire contra as sanções impostas ao regime de Putin. A Itália, fortemente afetada pelo aumento das contas da eletricidade e do gás, em que dois partidos da coligação direitista que venceu as eleições legislativas de 25 de setembro, a Liga e a Força Itália, são contra aquelas, é o exemplo mais significativo de uma expectável inversão de tendência que poderá estender-se a outros países europeus com o prolongamento da guerra.

Para ajudar à festa, o BCE defende novos aumentos das taxas de juro com o objetivo irrealista de fixá-las em 2% a médio prazo. Assim, ao incremento recente de 0,75% juntar-se-á, em dezembro, mais um outro de 0,5%. Christine Lagarde, presidente da instituição, não podia ser mais clara a este respeito quando disse recentemente que “desde julho aumentámos as taxas em 200 pontos base, o maior aumento da história do euro. Mas ainda não terminámos” (i, 2. 11. 22). Ora vejam só a euforia da senhora. No entanto, trata-se de uma estratégia errada, já que a origem da inflação, como já defendemos nestas páginas, provém da escassez da oferta e não do excesso de procura, podendo gerar uma recessão que o BCE não rejeita na sua defesa fundamentalista da estabilidade de preços. Os invasores russos agradecem mais este favor dos guardiães da ortodoxia monetarista europeia.

Joaquim Jorge Veiguinha