Artigo:Interrupção voluntária da gravidez em risco na Itália

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Interrupção voluntária da gravidez em risco na Itália

O semanário italiano L’Espresso publicou, na sua edição de 24 de maio de 2023, um dossier significativamente intitulado “Aborto: uma tragédia italiana”. Nesta edição figura a reprodução de uma capa da edição de 19 de janeiro de 1975 desta revista que retrata uma rapariga grávida pregada numa cruz com o objetivo de denunciar a praga de abortos clandestinos que arruinou a saúde e até a vida a muitas mulheres italianas. O diretor da publicação, Lívio Zanetti, foi pronunciado em juízo e a edição sequestrada. Em 22 de maio de 1978, a lei 194 legalizou a interrupção voluntária da gravidez em Itália. Em 17 de maio de 1981, um referendo confirmou-a.

A situação que se vive hoje no país transalpino, com uma coligação de direita e de extrema-direita no poder, assemelha-se cada vez mais ao 19 de janeiro de 1975. A primeira-ministra Giorgia Meloni, do partido de extrema-direita Irmãos de Itália (FdI), apesar de não ter tentado ainda abolir a lei 194, adota uma postura dita de «neutralidade» que favorece objetivamente os movimentos pró-vida que são impedidos de irromperem nas clínicas onde se pratica a interrupção da gravidez com vista a boicotar este ato médico que tem como fundamento a vontade soberana da mulher. O movimento pró-vida cada vez mais forte em Itália organiza também funerais de fetos cujos restos obtém nos hospitais. A este tipo de manifestação não deve ser certamente estranho o crescente número de médicos objetores de consciência que recusam a prática daquele ato. O seu número é verdadeiramente impressionante: 64,6% dos ginecologistas a nível nacional, dos quais 76,9% no Sul, ou seja, como refere a jornalista Susana Turco, mais de três em cada 4. A estes juntam-se ainda 44,6% dos anestesistas e 36,2% dos enfermeiros. Nos finais de 2021, existiam hospitais e consultórios com 100% de objetores e 72 hospitais «amigos dos bebés», onde não se praticam abortos. Apesar desta proliferação de objetores, o número de interrupções da gravidez diminuiu consideravelmente desde que a lei 194 foi aprovada. Em 2020, atingiram o mínimo histórico, 66 413 comparativamente com 234 801 em 1983. Na prática, muitas mulheres, sobretudo as mais pobres, não conseguem fazer uma interrupção da gravidez, num número crescente de regiões italianas, apesar da lei 194 ainda estar em vigor. Até quando?

Diversas figuras ligadas direta e indiretamente ao governo de Meloni não se têm poupado a esforços para acabar em definitivo com a lei. Entre estes destaca-se, nas Marche, Roberto Festa, médico voluntário do Centro para a Vida do Loreto e vice-presidente regional do Forum das famílias para o qual «quem defende que o aborto voluntário seja um direito tem as mãos tintas de sangue inocente, provavelmente mais de os que praticam este delito desumano.» Não falta hoje quem, como Grazia di Maggio, deputada do FdI, em 1994, defenda que «um feto não é um serzinho que surgiu por acaso no útero: é um ser que tem direito à existência, mas não tem ainda a possibilidade de escolher.» Multiplicam-se também os opositores à pilula abortiva, a Ru486, cuja utilização tem aumentado nos últimos anos. A primeira-ministra italiana «deu o exemplo» na campanha eleitoral que conduziu o seu partido ao poder: «Não se pode dizer que seja uma conquista civilizacional abortar sozinha em casa com uma pastilha que produz contrações e hemorragias apenas porque é preciso defender a todo o custo a tese de que abortar é fácil.»

 Por este andar a roda medieval, onde eram depositados os bebés, poderá tornar-se uma «conquista civilizacional». É o caso das «Safe Haven Baby Box» que, após as restrições à interrupção voluntária da gravidez estabelecidas pelos juízes conservadores do Supremo Tribunal de Justiça nomeados por Donald Trump se têm multiplicado nos estados norte-americanos mais conservadores. Amy Coney Barret, uma das juízas designadas pelo ex-presidente norte-americano, em substituição da juíza progressista Ruth Bader Ginsburg, considera-as como uma «alternativa válida ao aborto», porque «permitem o anonimato às mulheres e evitam o encargo da parentalidade.» O seu colega Samuel Alito, que escreveu a sentença que pôs em causa a nível nacional o direito à interrupção voluntária da gravidez, cita-a como um exemplo de «desenvolvimento moderno» (La Repubblica, 8/8/2022). Se isto é «desenvolvimento moderno», o que será subdesenvolvimento pré-moderno? Se isto é «civilização», o que será então a barbárie? Eis a questão.

Joaquim Jorge Veiguinha