Artigo:In Memoriam

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In Memoriam

Em 4 de setembro de 1970, há meio século, foi eleito como Presidente da República do Chile Salvador Allende, data histórica de que ninguém, que eu saiba, se lembrou neste país. Vitória conseguida no contexto da Guerra Fria e da guerra do Vietname que desencadeou forte oposição dos interesses instalados, mas que também suscitou grandes esperanças nas forças progressistas e nas classes trabalhadoras de todo o mundo. O novo Presidente exprimiu bem a dimensão universal do seu ideário quando num célebre discurso em dezembro de 1972 na Assembleia Geral da ONU dirigiu as suas saudações não aos poderes de turno, mas ao “pescador de Java”, ao “trabalhador que cultiva o cacau no Gana” e ao “mineiro de Cardiff”. Allende ousou desenvolver um amplo programa socializador com vista à emancipação das classes trabalhadoras: nacionalização das minas de cobre, reforma agrária com a supressão dos latifúndios e nacionalização da banca e dos grandes monopólios industriais. Democratizou a cultura tornando-a acessível a todos, promoveu a educação e a saúde públicas e desenvolveu uma política externa independente dos dois grandes blocos políticos, o socialismo de Estado soviético e o capitalismo yankee, integrando o seu país no Movimento dos Países Não Alinhados. Onze anos depois, um outro socialista, François Mitterrand, eleito Presidente da República francesa, aboliu a pena de morte e estabeleceu também um amplo programa de reformas socializadoras que se inspirou no programa comum de governo da esquerda francesa que, no entanto, não tinha sido sufragado pelos eleitores gauleses em 1974, ano em que Mitterrand se candidatou também às eleições presidenciais.

Em 11 de setembro de 1973 – data fatídica colocada em plano de total subalternidade e amnésia jornalística portuguesa face ao outro 11 de setembro, o de 2011 – Salvador Allende foi derrubado pelo golpe militar de Augusto Pinochet com a cobertura e aberta cumplicidade do governo norte-americano, particularmente do secretário de Estado Henry Kissinger. Milhares de pessoas foram mortas e torturadas, os sindicatos e os partidos políticos foram ilegalizados e o Chile tornou-se um campo de ensaio para as doutrinas ultraliberais da Escola de Chicago de Milton Friedman, prémio Nobel da Economia em 1976. Esta personagem justificou assim o seu apoio à junta militar golpista: “O Chile não é um sistema politicamente livre, e eu não perdoo este sistema. Mas as pessoas são mais livres do que o povo nas sociedades comunistas, porque o governo desempenha um papel menor (…) As condições das pessoas tornaram-se melhores e não piores, tornar-se-ão ainda melhores quando se desembaraçarem da junta e forem capazes de terem um sistema democrático”.

Em suma, a democracia só é legítima – não esqueçamos que Allende foi eleito democraticamente num contexto de pluralismo partidário e não num regime de partido único – quando “ganham os nossos”. Em caso contrário, deve ser ‘suspensa’ para ser restabelecida mais tarde quando os ‘nossos’ forem finalmente eleitos. É como dizer: o regime hitleriano foi uma necessidade, porque suprimiu a esquerda política da república de Weimar considerada como uma ameaça para uma liberal-democracia em crise profunda: deveras brilhante! Friedman, que faleceu em 2006, foi, porém, involuntária e paradoxalmente, premonitório: em 25 de outubro deste ano o povo chileno será consultado em referendo com vista à possibilidade de elaboração de uma constituição democrática que substitua a de Pinochet. Talvez nesta data seja restabelecida em pleno a democracia no país dos Andes, como profetizava Friedman.

Joaquim Jorge Veiguinha