Impunidade Fiscal
Segundo a Tax Justice Network a evasão fiscal atinge 370 000 milhões de euros anuais. Para a OCDE, os impostos sobre as sociedades diminuíram de 32% para 23% entre 2000 e 2020. De acordo com a Comissão Europeia, é desviado para paraísos o equivalente a 10% do PIB europeu. O Projeto Missing Profits estima que as grandes multinacionais transferem para estes paraísos 40% dos seus lucros que, em 2018, atingiram 776 000 milhões de euros, quase 4 vezes o PIB português. Eis uma parte do panorama, porém apenas a ponta do iceberg, da impunidade fiscal dominante.
Em boa hora, o Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ, siglas em inglês) destapou mais uma das suas pontas. Seiscentos jornalistas de 117 países, entre eles os do semanário português Expresso, analisaram 11,9 milhões de arquivos de 14 escritórios de advocacia especializados em estratagemas fiscais que permitam aos seus clientes elidir o fisco. Significativamente intitulada ‘Pandora Papers’, nome da personagem mitológica que abriu uma caixa que libertou todos os males do mundo, a investigação revelou o envolvimento de governantes e ex-governantes, empresas, estrelas mediáticas, os chamados “ricos e famosos”, na transferência para paraísos fiscais dos seus rendimentos estratosféricos com o objetivo de adquirirem propriedades imobiliárias, comprarem ações a preços de saldo ou simplesmente colocarem os superlucros auferidos em sociedades ‘offshore’ artificialmente criadas para escaparem ao fisco, sociedades-fantasma que nada produzem. Estes esquemas, que não são ilegais, acabam também por contribuir para o financiamento de operações criminosas, como o branqueamento de capitais, o comércio ilegal de armas e o narcotráfico.
Existem dois agentes que alimentam o processo de criação de sociedades offshore: os grandes escritórios de advogados de negócios e as sociedades financeiras, com particular destaque para os grandes bancos de negócios. Os primeiros são os criadores diretos daquelas sociedades, enquanto os segundos são ajudados e assessorados por aqueles na sua missão ‘criativa’ em representação dos seus clientes. Assim, por exemplo, o escritório Alcogal apoiou bancos nos diversos pontos do globo a fundar pelo menos 3926 sociedades ‘offshore’, de que se destaca o Morgan Stanley, o segundo maior banco de negócios norte americano, com 312.
As consequências deste processo de elisão fiscal que já mal se distingue da evasão fiscal, que é ilegal, são extremamente graves, pois põem em causa a justiça fiscal e social num mundo marcado pela globalização neoliberal em que o nivelamento por baixo dos impostos diretos, em particular dos que incidem sobre os lucros das grandes sociedades, dos grandes patrimónios imobiliários e mobiliários e também dos impostos sucessórios, contribui para debilitar cada vez a progressividade fiscal e tributária. De facto, a redução da carga fiscal sobre os rendimentos dos mais abastados, acaba por desencadear um processo perverso que liberta os ‘males’ da caixa de Pandora: incidência predominante dos impostos diretos sobre as classes médias e as classes trabalhadoras que sustentam as receitas fiscais, aumento dos impostos indiretos que pesam mais sobre estas classes do que sobre as primeiras, quebra generalizada da procura global em consequência da redução da capacidade aquisitiva da maioria dos cidadãos e tendência crescente para a criação de impostos únicos sobre o rendimento coletável (flat taxes), que já existem em alguns países, reduções das receitas fiscais para financiar as políticas redistributivas de um Estado social cada vez mais debilitado e endividado. Numa palavra, aumento cada vez maior das desigualdades sociais e económicas.
As alternativas a esta situação insustentável a médio e a longo prazo são fundamentalmente de natureza política, embora no atual contexto sejam extremamente difíceis, pois devem envolver medidas a contra corrente do neoliberalismo dominante. Assim, a tentativa de criar uma maior harmonização fiscal a nível global – cujo primeiro passo, manifestamente insuficiente no atual contexto, foi a criação de uma taxa mínima global de 15% sobre os lucros das sociedades – só terá viabilidade se, antes de tudo, a nível de cada país, se tomarem medidas de englobamento dos rendimentos, já que é inaceitável que os impostos sobre os lucros das sociedades continuem na maior parte dos países a basearem-se numa ‘flat tax’ que beneficia sobretudo os das grandes sociedades em detrimento das pequenas e médias empresas. Em seguida, a obrigatoriedade declarativa dos rendimentos que se pretende transferir para o exterior, em particular para offshores, não deve ser meramente formal, mas implicar um aumento da tributação à saída que se revele fortemente desincentivadora. Por fim, penalização dos países que se regem pelos ditames da ‘competitividade fiscal’ através do aumento do imposto sobre os lucros das sociedades que deverá passar dos 15% atuais para, no mínimo, 25%, como defende o economista Joseph Stiglitz, prémio Nobel da Economia, ou para um valor que deverá ser superior ao dos países, como a Irlanda e o Luxemburgo, com impostos mais baixos sobre as sociedades estrangeiras domiciliadas. Só assim, se poderá começar a luz ao fundo do túnel e, consequentemente, iniciar a reversão dos malefícios libertados pela caixa de Pandora.
Joaquim Jorge Veiguinha