Homo "sapiens sapiens"
Talvez fosse mais apropriado Homo perniciosius insanire. Como nomear uma espécie que arrasa irreversivelmente, conscientemente, 4600 000 000 de evolução biológica, no único planeta capaz de albergar vida que conhecemos e a que podemos efetivamente aceder, pondo em causa a sua própria existência e deserdando as gerações vindouras, ad eternum, desse património? Não me parece que "sapiens" seja, definitivamente, um bom nome.
Ficamos ontem a saber, em vários órgãos de comunicação social, que o caranguejo-ferradura, que resistiu às supererupções vulcânicas de há 251 milhões de anos que mataram 90% das formas de vida marinhas e 70% terrestres, que resistiu a um meteorito que matou todos os dinossauros e mais de metade das espécies do nosso planeta há 65 milhões, está quase a sucumbir à praga humana.
Isto para lhes extrair o sangue destinado a experiências com vacinas e outros medicamentos, sendo depois devolvidos ao mar, estimando-se que cerca de 30% acabam por morrer.
No início do mês confirmou-se a extinção de um peixe na Austrália, outrora abundante, vítima da pesca em excesso, um animal lindíssimo, que usava as barbatanas peitorais como patas para se deslocar no leito oceânico, à semelhança dos nossos longínquos antepassados há cerca de 400 milhões de anos, quando começaram a dar os primeiros passeios em terra firme.
Soubemos também, ontem, que os lémures, em Madagáscar, estão à beira da extinção, conjunto de espécies bastante fofinhas, cinematográficas, a par de muitas outras também em vias de extinção (pense-se nos felídeos ou no panda). Não basta ser belo ou inofensivo para escapar, mas isso é assunto para outro artigo.
Claro que poderíamos estar aqui a nomear membros de uma lista interminável de espécies em vias de extinção ou já extintas, e é óbvio que as aqui referidas não são mais importantes que todas outras. Contudo, estas terríveis notícias vão-nos lembrando do que está debaixo da espuma dos dias, por via de realidades estruturais e desestruturantes criadas pela nossa espécie, contra si própria em última análise.
Entretanto, estamos a viver um tempo histórico de declínio abrupto e trágico da cooperação internacional, pelo recrudescimento de populismos, nacionalismos, autoritarismos e outros fenómenos complexos, os quais já culminaram com a saído dos EUA da Organização Mundial de Saúde em plena pandemia, por uma questão de política interna.
Não há solução para o ecocídio sem cooperação internacional, como prova o incremento brutal da desflorestação da Amazónia por via do clã Bolsonaro, que afastou todas as parcerias internacionais visando a sua proteção, para libertar espaço de manobra ao agronegócio e os lucros de curto prazo.
A emergência da COVID-19 ameaça tornar-se fonte de pressão adicional sobre ecossistemas já de si fragilizados, especialmente em países pobres, em que hordas de gente esfaimada, sem emprego, sem assistência alimentar ou sanitária por via de economias dilaceradas pela dívida, pelas falências e o desemprego, sejam obrigadas a recorrer à única fonte de subsistência à mão: os recursos biológicos naturais. Serão os países ditos desenvolvidos capazes de prestar o auxílio que evite mais este percurso a caminho do abismo?
João Correia