“Filmar o Outro, O Gesto Documental”
O potencial transformador do cinema
Lígia Calapez e Sofia Vilarigues
Realizou-se em Portugal, pela primeira vez, o encontro internacional final do programa “O Cinema, Cem Anos de Juventude”. O encontro reuniu, na Cinemateca, entre 3 e 7 de junho, alunos dos ensinos básico e secundário de 50 escolas de 14 países de todo o mundo. Onze escolas portuguesas participaram, através do trabalho desenvolvido com a Associação Os Filhos de Lumière. Nesta edição, o tema aglutinador das obras apresentadas foi “Filmar o Outro – O Gesto Documental”. Pela primeira vez a questão trabalhada foi a realização de um documentário.
Este programa educativo, desenvolvido desde 1995 por Alain Bergala e Nathalie Bourgeois, cruza uma metodologia prática (em que os alunos são convidados a realizar um filme) com a análise teórica de excertos fílmicos.
No início dos trabalhos, Teresa Garcia, em nome de Os Filhos de Lumière, realçou que “este programa é essencial para um verdadeiro encontro com o cinema, no que ele pode representar no crescimento e na transformação de cada um, de todos, começando pelas crianças e jovens”.
Aqui fica uma brevíssima síntese do primeiro dia do encontro.
O que nos apaixona
Um excerto do filme “Ossos”, do realizador Pedro Costa, padrinho do evento, foi motivo de um debate sobre o fazer cinema, também com Alain Bergala e Ricardo Lisboa.
“Não estava a sentir que tinha tempo para trabalhar, para fazer o que eu queria. E comecei, neste filme, a pensar como é que eu podia mudar a maneira de trabalhar. A fazer as coisas que eu queria fazer quando era mais jovem e quando pensei que gostava de fazer cinema. O que eu sentia era que precisava de voltar a qualquer coisa mais documental, mais simples, mais humana, mais perto das pessoas, mais perto das coisas”, revelou Pedro Costa.
“Eu vejo aqui que a beleza é uma grande preocupação da tua parte”, avaliou Alain Bergala. “Para mim bem feito é belo”, afirmou Pedro Costa. “Venho de uma escola, de uma formação que é o cinema clássico. E o que eu aprendi com esse cinema era o fazer bem. Era o olhar bem. E esse cinema clássico tinha também um grande equilíbrio. Conseguia equilibrar bem a história. A ficção, fantasia com vida, realidade”.
À pergunta do jovem público, “Porque opta por temas onde traz a diferença social?”, o cineasta lembrou Charles Chaplin. “O cinema por altura de quando ele vivia, quando ele começou a fazer filmes, a preto e branco, em quase todos os filmes mostrava muito essas coisas. Essas pessoas que viviam mal, que tinham dificuldades, que passavam fome, que lutavam, que tinham frio. E era importante”.
A outra pergunta pertinente do público, “Queria saber se você teve algum objetivo, se você quis emitir alguma coisa como o filme que você fez?”, Pedro Costa respondeu “Não. É só mostrar. Vês coisas, tens uma câmara fotográfica, uma câmara de filmar, filmas, mostras. É só mostrar, não é dizer”. E avançou ainda: “Mostrar em muito grande esta pequena realidade com a qual nós temos um caso, um caso que nos interessa, que nos apaixona”.
Breves notas sobre sete olhares diferentes
As escolas portuguesas estiveram em maioria no primeiro dia do grande encontro deste projeto internacional. E, tal como os jovens estudantes de outros países (neste caso Japão e Brasil), desenvolveram o seu trabalho numa lógica de proximidade, com as comunidades envolventes, numa interação e diálogo em que confluem e se confundem aprendizado do cinema e da realidade e relações humanas. Mas não será também esse o objetivo do projeto?
O Mercado de Arroios (vazio, dada a hora a que decorreram as filmagens), mas polo aglutinador de uma fervilhante vida à sua volta, foi o tema apresentado pelos alunos da António Arroio, Lisboa. “Mostramos assim um mercado mais silencioso, em que à sua volta está a acontecer a vida. E aquele local, é como se fosse o núcleo disto tudo (…) Todas as diferentes áreas, diferentes tipos de culturas e de entidades, só existem ali, num único sítio juntos, por causa do mercado.“
O fazer do filme exigiu muito do olhar partilhado dos alunos. E da escuta. “Pensarem naquilo que é o sítio onde estão. Fecharem os olhos. E ouvirem os sons. Isto é essencial para que vocês se conectarem àquilo que vocês querem gravar.”
Aconteceu no Ledo. “Uma bela manhã fomos todos conhecer a aldeia de Ledo. Conhecemos a Dona Almerinda e as galinhas do Chico Zé. Da sua horta trouxemos alguns alimentos para as pizzas que fizemos no forno comunitário, no largo da aldeia.” A síntese do filme apresentado pela Escola EB 2,3/S de S. Sebastião, Mértola, fala por si.
No processo da sua elaboração, interagiram e colaboraram gerações muito diferentes. Sem qualquer dificuldade. “Porque é uma pequena aldeia, toda a gente praticamente se conhece, toda a gente é amigável”. E coube aos jovens ainda – correspondendo às recordações de uma senhora mais velha - animar a festa com um acordeonista. “Nós, literalmente organizamos tudo em uma aldeia pequena e onde nada acontece, nós temos de fazer isso acontecer.”
De Sintra, vieram apresentações de dois grupos distintos de jovens.
Uma Vida depois de Odrinhas, apresentado pelo Clube Espaço Melka, recupera memórias da “relação única entre o edifício da Escola de Recuperação do Património de Sintra e a aldeia de Odrinhas”, com base no testemunho de um ex-aluno da escola hoje desativada e atual professor na escola presentemente frequentada pelos jovens. “Nós, no filme, mostramos a realidade. A realidade é que aquilo é uma aldeia que agora está mesmo vazia, especialmente no local da nossa escola, que era o mais movimentado ali.”
Não são rabos, não são pernas é um filme sobre uma peça de teatro, com marionetas, apresentado por alunos da Escola Secundária Matias Aires.
Um filme cuja temática resulta um pouco do acaso. Ou melhor dizendo, da própria lógica de proximidade com que se trabalhou. “Uma vez por mês, Fernando e José apresentam um espetáculo de marionetas dirigido a adultos, a partir de um livro de histórias para crianças. Nesta noite trazem ao palco da Casa da Marioneta o tema da diversidade”. “Nós já tínhamos um estagiário da nossa escola, nesta Casa das Marionetas. E queríamos tratar um pouco mais do assunto da sexualidade. Mas sem ofender ninguém. E pensamos que, em vez de olhar para o corpo da pessoa, se deve olhar mais para a pessoa em si.”
Os estudantes do Children Meet Cinema, Tóquio, Japão, trouxeram até nós um documentário – Oração - que decorre em torno de um templo, o santuário Kongo Hachimangu localizado em Shibuya, Tóquio, em que o portão do templo aparece como uma espécie de intermediação com a realidade. Ou, como refere uma das pessoas presentes no documentário e que trabalha no templo, de intermediário entre as pessoas e Deus “Nós filmámos tudo o que queríamos e, depois, quando estávamos a olhar para o material, percebemos que realmente havia uma grande preocupação com o portão, e com a fronteira entre o interior do templo e o exterior, e que isso, de alguma maneira, representava aquilo que nós estávamos a querer filmar.”
Vida de Babá. “Um parque da cidade de São Paulo. Todos os dias várias babás levam suas crianças e se encontram. Quatro babás contam um pouco sobre suas vidas, rotinas, sonhos…” O trabalho apresentado pelas crianças da Escola Carlitos (CM2 A), São Paulo, Brasil, foi uma construção com base no diálogo. De que depois resultou muita reflexão. “Nós fomos para o jardim e vimos que havia várias babás lá. E nós as aproximámos e dissemos, Olá, desculpe, nós estamos fazendo um filme documentário. Nós gostaríamos de falar com vocês. E a gente foi vendo umas semelhanças entre cada resposta. E a gente tentou botar num filme o que, na vida de umas babás, tem certa semelhança.”
Depois de feito o filme, “descobrimos que, na verdade, a gente não conhece tão bem as nossas babás. Então, muitas pessoas perguntaram e quiseram descobrir mais sobre as próprias babás. Isso nos fez pensar muito e ter algumas reflexões”.
Casas Fechadas. “Numa antiga vila operária de Lisboa, restam já poucos moradores. A maioria das casas está fechada e especula-se sobre qual o futuro para aquele espaço…. Cinquenta anos após a revolução de 1974, estas pessoas continuam a lutar pelo direito à habitação”. Este o conteúdo de um documentário que levou estudantes da Escola Secundária Marquês de Pombal, Lisboa, a um trabalho de recolha de fotos históricas e de diálogo com os poucos moradores que restam. Em particular com a Sr.ª Guilhermina (que veio dar o seu testemunho à Cinemateca). E com quem participaram na manifestação do 25 de Abril.
“Foi até fácil conhecê-la, porque, como ela mora perto da nossa escola, a gente às vezes vê-a na rua. E é muito importante ver o lugar, porque mostra como era perto da nossa escola antes de ser uma cidade grande.” Um contato humano e próximo, que terminou com um agradecimento à Sr.ª Guilhermina, “por nos ter ajudado imenso. Por nos ter ensinado, por nos ter falado como é que foi a sua infância, como é que foi ter passado o 25 de Abril. Porque a maior parte das pessoas hoje em dia, adolescentes, não sabem como é que foi difícil o passado. Então, nós agradecemos imenso. (…) Por nos ter ajudado a fazer este filme. Sem ela não seria possível”.
Um agradecimento que, de algum modo, simboliza a importância de filmar o outro, as ligações humanas que se estabelecem, o muito que se aprende com esse olhar.
Versão resumida publicada no «Escola/Informação Digital» n.º 43 | julho/agosto 2024