Entrevista com Carlos Ceia
A nossa tarefa como professores na escola do futuro é simples: mantermo-nos o mais humanos possível
Lígia Calapez e Sofia Vilarigues | Jornalistas
“A falta de professores: o desencontro entre a necessidade das escolas e as ofertas no superior” foi o tema do debate que decorreu no passado dia 20 de novembro, no SPGL, de que foi orador Carlos Ceia, professor catedrático e vice-presidente do Conselho Científico da FCSH da Universidade Nova de Lisboa.
Na entrevista posterior que nos proporcionou, Carlos Ceia avançou com críticas e propostas concretas em relação à formação de professores e a nível curricular. Questões a suscitar amplo debate.
Concluiu, destacando: “A nossa tarefa como professores na escola do futuro é simples: mantermo-nos o mais humanos possível; só não sabemos se tal é suficiente para continuarmos a existir.” E acrescentou uma nota de esperança: “Para já, acredito que sim. E aposto muito nas novas gerações de professores, que tentamos que estejam mais preparadas para este novo futuro”.
Com a nova legislação – Decreto-Lei nº 9-A/2025 – há condições para formar mais e melhores professores? Que mudanças neste decreto gostaria de destacar?
É preciso conhecer o contexto dessa lei para perceber como chegámos até aqui: a sua apresentação oficial já diz muito do contexto: “revisão do regime jurídico da habilitação profissional para a docência na educação pré-escolar e nos ensinos básico e secundário, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 79/2014, de 14 de Maio, alterado pelos Decretos-Leis n.os 176/2014, de 12 de Dezembro, 16/2018, de 7 de Março, 112/2023, de 29 de Novembro, e 23/2024, de 19 de Março”. Isto representa um grande desnorte legislativo que tem marcado a área da formação inicial de professores nas últimas décadas, mais grave porque esta lei foi precedida de dois decretos que não chegaram a entrar em vigor. Entre todas estas leis, mal construídas, o processo de acreditação dos mestrados em ensino congelou. E quando finalmente sai o DL 9A/2025 descobrimos que traz erros que vieram a provar-se terríveis para essa renovação dos planos de estudos dos actuais mestrados em ensino, em vigor a partir desde ano lectivo. O art. 9º desta nova lei destrói a formação educacional de todos os mestrados em ensino, porque obriga a incluir nos planos de estudo 9 (NOVE!) áreas temáticas, cada uma a transformar num seminário quando apenas existe um máximo de 18 ECTS para o 3.º Ciclo do Ensino Básico e Ensino Secundário e um máximo de 10 ECTS para os cursos de 90 ECTS (1º Ciclo). Isto é tão grave que somos obrigados, para cumprir este disparate legislativo, a ter seminários de 1 ECTS num mestrado! Não lembrava ao pior dos legisladores! Mais grave ainda, o Governo ter sido alertado para isto por vários pareceres depois da publicação da lei e até hoje simplesmente ignorou e empurrou-nos a todos, formadores de professores, para uma absurda formação educacional dos futuros professores. Foram ainda introduzidas regras muito confusas para organização do ano dedicado à formação profissional (estágio nas escolas cooperantes) e processos de validação de diplomas e graus estrangeiros, em certas condições que nos trouxeram um esforço acrescido muito difícil de gerir e de avaliar, sob pena de criarmos autênticas vias verdes de habilitações estrangeiras em concorrência directa e quase desleal com os nossos diplomados, por força das enormes diferenças de modelos de formação de professores que simplesmente não podem ser equivalentes.
Há vagas suficientes para mestrados em ensino para que se possa ter os novos professores necessários nos próximos anos?
Não, não há. Mudou-se o paradigma do 2º ano dos mestrados (quando se faz o estágio) para o sistema de bolsas (contra o modelo anterior que nunca entrou em vigor de estágios remunerados), mas ainda assim com orçamento limitado, sem chegar a todos os alunos, o que comprovou que tal incentivo não foi suficiente para atrair mais candidatos. Na verdade, nos últimos três anos, o número de candidatos aos mestrados em ensino em quase todas as disciplinas é superior ao número de vagas e aqui é que está a raiz do problema. Em Setembro passado, o Governo assinou contratos com várias universidades para financiar até 30% dos cursos para grupos de recrutamento carenciados. Embora seja uma medida há muito reclamada, é curta, muito curta para podermos sequer chegar onde devíamos já estar: cerca de 4000 diplomados por ano, se quiséssemos acompanhar as saídas de professores do sistema. Nas actuais condições, podemos chegar a metade desse objectivo, ou pouco mais, portanto ainda muito longe das reais necessidades do País. E sem esse esforço estratégico, o problema vai-se adiando, adiando, até ao sufoco final…
Que medidas se impõem para garantir os professores de que o sistema público de educação precisa, sem sacrificar a qualidade da formação inicial?
O mais urgente é corrigir a formação educacional nos mestrados em ensino, torná-la mais flexível e deixar que autonomia curricular funcione aqui. É preciso rever os contextos em que os estágios devem funcionar nas escolas, proteger o trabalho dos orientadores cooperantes e dar-lhes melhores condições para poderem fazer o seu trabalho de supervisão que é essencial e que exige tempo e muita dedicação. É preciso rever as condições em que se podem reconhecer as habilitações estrangeiras para a docência, deixando essa responsabilidade exclusivamente para as instituições de ensino superior, mas com regras mais justas e equilibradas do que aquelas que ainda persistem numa velha portaria (Portaria nº 967/2009) que já devia ter sido revogada há muito tempo. Não podemos ter interpretações muito diferentes para quem possui habilitação profissional para a docência com um diploma estrangeiro e quer leccionar em Portugal e para quem segue o sistema nacional com diploma que resulta de uma licenciatura e um mestrado em ensino com Prática de Ensino Supervisionada (normalmente não existe nesses sistemas, em particular o brasileiro que é o mais comum) e defesa pública de um trabalho de investigação prática com alguma profundidade. São graus e modelos de formação muito diferentes entre si e que não podem simplesmente serem equiparados de forma simplificada. Depois, é ainda urgente contratar mais docentes doutorados para o sistema de formação de ensino superior para ser possível aumentar as vagas disponíveis e garantir um regular acompanhamento dos mestrandos durante a sua prática de ensino supervisionada. O caminho oposto que estamos a seguir, contra todas as recomendações internacionais da UNESCO e da OCDE, que convergem na necessidade de não abdicar da qualidade da formação num contexto de falta de professores, nunca resolverá o problema por inteiro e, se continuarmos a injectar o sistema com professores sem habilitação profissional para a docência, o sistema vai em algum momento mostrar a sua falência.
Como superar possíveis desfasamentos entre os mestrados e a realidade das escolas?
Tenho sempre dificuldade em responder a esta questão clássica, porque não me revejo totalmente nela. No contexto em que trabalho, fazemos tudo o que é possível, em dois anos de formação inicial, dos quais um é trabalho na escola cooperante, para que essa distância seja muito curta. Para além de uma constante renovação dos conteúdos dos seminários, para que sejam sempre correlacionados com os grandes temas actuais da educação e sempre com uma interligação à investigação mais recente sobre cada matéria, ainda assim é vox populi comum dizer-se que a formação inicial de professores está desfasada da realidade das escolas, que não prepara para a vida activa, etc. Não posso deixar de discordar. Primeiro, é uma espécie de mito académico pensar que na formação inicial – o conceito, a rigor, já nem tem expressão legal, mas mantém a sua actualidade profissionalizante – se deve aprender tudo o que um professor deve aprender para executar o seu trabalho diário numa escola, uma vez na vida activa. Não conheço nenhum programa de formação do mundo que consiga essa proeza. Isso simplesmente não existe nem alguma vez vai existir. Estamos a falar de um tempo de formação de dois anos que se acrescenta a uma licenciatura de três. Como é possível “ensinar tudo o que há para ensinar e aprender” a um futuro professor em qualquer campo do conhecimento em apenas cinco anos de formação? Conseguimos fazer isso na medicina, numa qualquer engenharia ou no direito ou em outra área com via profissionalizante? Naturalmente que não. Contudo, é sempre aos programas de formação inicial de professores que se pede tudo. Por exemplo, com a formação educacional reduzida a um máximo de 18 ECTS nos mestrados de 120 ECTS e de 10 num de 90, como é que se pode preparar alguém para os enormes desafios de hoje que a escola portuguesa (e não só) enfrenta, desde a educação especial às vias profissionais, desde a integração de alunos estrangeiros em massa à inclusão de alunos com necessidades especiais (dos que têm mais dificuldade em aprender e dos que têm mais facilidade e de que tendemos a esquecermo-nos), desde uma legislação confusa, extensa e pouco exequível em termos burocráticos ao sistema de avaliação das aprendizagens, etc, etc. Alguém consegue preparar convenientemente para isto tudo numa mão cheia de créditos de formação, que se traduzem em muito poucas horas semanais lectivas? Claro que não. Por isso, hoje, reclamo que a formação inicial não deve parar no final do mestrado em ensino e deve sim completar-se com um verdadeiro ano de indução, no ano após a obtenção da habilitação profissional, para completar e reforçar tudo o que já foi aprendido, com uma mentoria adequada e sem pensar em avaliações, prazos e júris. Mas isso em Portugal, sendo uma boa prática em países desenvolvidos, parece uma miragem.
Que alterações do currículo, a nível de ciclos, proporia?
No artigo em acesso aberto: “O ensino de Inglês na era digital e o currículo nacional: trajectórias emergentes, desafios e soluções”, disponível em: https://cetapsrepository.letras.up.pt/id/cetaps/115541, já fiz um exercício de reconfiguração do currículo nacional tendo em vista três grandes mudanças que muita gente sempre disse que seriam impossíveis de realizar em simultâneo: a organização de ciclos escolaridade nos ensinos básico e secundário, a revisão dos grupos de recrutamento e a revisão dos mestrados em ensino. O que aí sugiro é um ponto de partida para uma reflexão que me parece absolutamente necessária neste quadro de revisão do ECD. Para mim, é espantoso que Portugal mantenha – e julgo ser caso único no mundo – um ensino básico com três ciclos de escolaridade. Isto há muito tempo que não faz sentido. O Decreto nº 48572, de 9 de Setembro de 1968, criou o então Ensino Preparatório e a divisão em três ciclos manteve-se até hoje. Nenhuma literatura, nenhuma investigação, nenhum modelo avançado de ensino que eu conheça acompanha esta divisão nas últimas décadas. Temos depois que ajustar a formação de professores a esta tripartição quando sabemos que não acompanha o desenvolvimento etário dos jovens da forma que a literatura científica internacional a consolidou e que levou a que a maior parte dos países tenham optado há muito por uma divisão de 6 + 6 anos, ou 4 + 4 + 4 (a minha preferida como explico nesse artigo) ou mesmo 6 + 3 +3, que parece ser aquela que talvez a tutela venha a adoptar, logo se verá quando a discussão pública se iniciar. Qualquer solução que passe por desfazer o actual 2º Ciclo e reagrupá-lo num dos modelos mais compactos que não ultrapassem os três ciclos de escolaridade em 12 anos possíveis é para mim uma solução adequada. Isso vai permitir reajustar a formação inicial e também a formação contínua à investigação que se faz por esse mundo fora, vai permitir reajustar a própria organização epistemológica dos mestrados em ensino e alinhar as nossas práticas docentes com as melhores práticas internacionais. Vai ser fácil encontrar um consenso? Não, porque deixámos que em Portugal o sistema de três ciclos do ensino básico funcionasse sem sinergias nem verdadeira interligação, apesar de em alguns agrupamentos poderem existir, e existem mesmo, casos de boa comunicação entre esses ciclos e mobilidade docente funcional. Contudo, essa não é a regra geral e isso, na minha opinião, tem de ser mudado quanto antes. Não podemos deixar perder esta oportunidade de revisão do ECD para o fazer.
E no que respeita aos grupos de recrutamento?
Naquele mesmo artigo que citei, tenho uma proposta de revisão dos actuais grupos de recrutamento. Pode-se resumir a estes pontos: é necessário alargar o grupo 120 aos quatro primeiros anos de escolaridade, algo que não possível de fazer em 2014, mas existem hoje condições para o conseguirmos fazer; é necessário criar um grupo de Ciências Sociais que permita de uma vez por todas existir formação de professores de Antropologia, Direito e Sociologia, sendo depois adequado que os professores com habilitação profissional para a docência neste grupo ficassem responsáveis pelo grupo (a criar) de Educação para a Cidadania (não necessariamente em todos os anos de escolaridade mas apenas uma vez em cada ciclo); é necessário corrigir o erro histórico de juntar pares disciplinares como a Biologia e a Geologia e a Física e a Química quando são saberes distintos que correspondem a licenciaturas monodisciplinares distintas e campos de investigação distintos, caso contrário, vamos continuar a ter uma muito residual formação de professores para estes grupos actualmente bidisciplinares, porque é impossível que as universidades façam a fusão desses campos do conhecimento contra a sua própria história universal e criem aqui, neste cantinho português tão criativo, novas fusões científicas que o mundo desconhece. Ou desfazemos isto e criamos grupos monodisciplinares, ou simplesmente não vamos ter professores para esses grupos nas próximas décadas.
Especificamente, que propostas é que tem em relação ao Português Língua Não Materna?
Ao longo da última década, a escola pública portuguesa sofreu uma alteração profunda no perfil da sua população discente, acolhendo um contingente crescente de alunos estrangeiros, hoje mais de 150 mil nas nossas escolas públicas, oriundos tanto de países lusófonos como de outras geografias. Neste contexto de multiculturalidade, é para mim uma urgência nacional o ensino de Português Língua Não Materna (PLNM) e de Português Língua Estrangeira (PLE). Nós estamos a improvisar processos de aculturação e integração todos os dias. Cada um vai fazendo o que pode em cada escola, mas tenhamos a consciência de que não estamos a fazer isto bem. Conheço algumas escolas que têm excelentes programas de integração, mas não são a regra, infelizmente. A integração da disciplina de PLNM nos currículos dos Ensinos Básico e Secundário está em dissonância com a existência de formação específica de professores para dar resposta a esta realidade nas escolas. Nós temos mestrados em ensino de Português Língua Estrangeira, mas estão fora do sistema de mestrados em ensino porque não existe um grupo de recrutamento. É absolutamente urgente criar este grupo, mesmo antes de entrar em vigor seja que modelo for de estrutura de ciclos, e começar a arrumar esta casa cada vez maior e cada vez mais improvisada.
Ainda que um pouco à margem do debate realizado - que mudanças na formação de professores se colocam face às atuais alterações a nível tecnológico? E de contexto cultural?
Tenho feito muitas comunicações e dado muitas formações sobre este tema nos últimos tempos, sobretudo aplicado ao ensino de línguas. Podem ler o estudo mais recente aqui: https://cetapsrepository.letras.up.pt/id/cetaps/132586 Em síntese, direi que a actual formação de professores está a acompanhar as mudanças tecnológicas, incluindo todo o desenvolvimento da educação digital, com inúmeros cursos de formação, colóquios, congressos, publicações, etc. Não falta informação, não falta interesse, e até nos mestrados em ensino se tornou tema obrigatório. Havendo pouco tempo na formação inicial para falar de um tema que se actualiza diariamente, urge que na formação contínua não se perca de vista duas coisas: a formação para uma melhor informação sobre novas tecnologias digitais aplicadas ao ensino; uma outra formação que pode ser simultânea para não se perder de vista a que continuamos a ser humanos capazes não de competir com a máquina mas de a controlar, e de a usar bem, de ensinar a usar bem, para podermos fazer melhor o nosso trabalho sem receio de que em algum momento distópico a máquina nos substitua. É, pois, preciso moderar o entusiasmo com a IA, mas também não pode ser solução simplesmente ignorá-la ou declará-la inimiga da educação. Eu não sou o mesmo professor que era há três anos, quando apareceu o ChatGPT, mas sou certamente o mesmo professor que acredita naquilo que pode fazer com o seu modo de pensar estritamente humano ao mesmo tempo que pode realizar certas tarefas mais rapidamente. É aqui que vejo a maior mudança, mas estou consciente da enorme exigência que se coloca hoje a um professor que terá de ser agora também um criador e supervisor de instruções num qualquer modelo generativo de linguagem ao mesmo tempo que terá se ser sempre um juiz atento aos maus usos da tecnologia. Como rematei naquele artigo que citei inicialmente: “A nossa tarefa como professores na escola do futuro é simples: mantermo-nos o mais humanos possível; só não sabemos se tal é suficiente para continuarmos a existir.” Para já, acredito que sim. E aposto muito nas novas gerações de professores, que tentamos que estejam mais preparadas para este novo futuro.
O entrevistado escreve segundo o anterior Acordo Ortográfico
Texto original publicado no Escola/Informação Digital n.º 47 | novembro/dezembro 2025