Entrevista a Joaquim Colôa
A mudança deve acontecer da base para o topo, num movimento consistente, reflexivo, crítico e consensualizado
Joaquim Colôa | Professor e
Doutorado em Ciências da Educação
Jorge Humberto (JH): A Educação Inclusiva em Portugal tem um percurso assinalável em 50 anos de democracia, o que destacaria como marcos desta evolução?
Joaquim Colôa (JC): Neste percurso, de que Portugal se pode orgulhar dado o tempo que temos de democracia, assinalaria dois grandes momentos. O primeiro momento, é aquele em que a Dra. Ana Bénard da Costa, a obreira deste grande caminho, logo a seguir ao 25 de abril de 1974, consegue encetar um conjunto de dinâmicas de envolvimento de políticos e de técnicos que permitiu dar início às primeiras práticas, mesmo que ainda muito experimentais, de integração em escolas do ensino regular de crianças com condição de deficiência. É a ela que devemos os primeiros diplomas legislativos, dos quais destacaria o Decreto-Lei 319/91, entre muitos outros diplomas mais abrangentes. Para além disso, embora as instituições de Educação Especial tivessem sido criadas, na sua grande maioria, por associações de pais, é também à Dra. Ana Bénard que se deve o enquadramento normativo.
O segundo momento que destacaria, pelas grandes alterações estruturais, são os finais dos anos 90 do século passado. Em meu entendimento é quando, pela publicação da Declaração de Salamanca, a visão passa a ser a de inclusão. Em Portugal destacaria a publicação do Despacho – conjunto 105/97 que aporta toda uma nova visão do que devem ser serviços inclusivos, assentes em pressupostos de trabalho em equipa, de proximidade às escolas e interagindo no seio destas, um entendimento mais sistémico. Esta mudança foi possível pela visão partilhada por toda a equipa política do Ministério da Educação, da qual nomearia, de entre muitos, o professor Paula Abrantes, diretor geral e o Dr. Vasco Graça. O Ministério da Educação convida novamente a Dra. Ana Bénard da Costa para liderar todo o processo. Esta propõe o nome da Dra. Filomena Pereira, que se manterá nos serviços até aos tempos atuais. De forma geral as alterações são ao nível da filosofia e da organização de serviços, mantendo-se o Decreto-lei 319/91. Alicerçadas em mudanças estruturais com base em conceitos como ao nível da avaliação das aprendizagens, de flexibilidade curricular e de diferenciação pedagógica, como práticas essenciais para a inclusão dos alunos, as decisões são tomadas, diferentemente, a nível regional. Nos anos que se seguiram assistimos a mudanças a todos os níveis com base na partilha de boas práticas a nível nacional e mesmo internacional, o que operou um trabalho interserviços, com base em redes de aprendizagem regionais e nacionais muito interessantes.
JH: Nesse percurso houve inúmeras tensões e barreiras e nem sempre as coisas aconteceram de forma positiva e isso também marcou estas décadas. Quais são os aspetos que destacaria que marcaram negativamente este caminho?
JC: Os desafios têm sido muitos. Eu destacaria, mais do que momentos específicos, aspetos gerais como a desvalorização de conquistas realizadas que necessitavam de ser reconhecidas. A avaliação pouco consistente, pouco crítica e nem sempre objetiva das políticas e das práticas, para que as boas práticas pedagógicas e decisões políticas pudessem ser mais no sentido da consolidação do que se fez e faz bem e de melhoria do que se apresenta como menos bem. Mais do que pressupostas inovações sucessivas, muitas vezes meramente conjunturais e só para responder a calendários político partidários e, ou de lóbis técnicos, económicos e, quantas vezes, pessoais, necessitamos, antes de qualquer mudança, identificar forças e fragilidades, sem culpabilizações e complexos. Às vezes, quem muito fala nas conquistas realizadas, parece desvalorizar essas mesmas conquistas nas decisões que toma. Essa negação que, muitas vezes, é mera “troca de nomes” mantendo-se as entropias. A visão conjuntural e pressupostamente de modernidade, sem atender que algumas ditas inovações são avaliadas negativamente noutros países. Não ter em conta o todo do sistema educativo e normativo, não haver uma visão integrada e integradora. A produção especifica de legislação para a inclusão quase, inevitavelmente, foca grupos específicos e não todo do sistema. Isto porque se as realidades das escolas não forem reconhecidas as decisões normativas tenderão sempre a ser motivo de entropia mesmo que, muitas vezes, em nome da inclusão.
JH: Recentemente, foi aprovada legislação, nomeadamente o Decreto-Lei n.º 54/2018 de 6 de julho, denominado “Regime Jurídico da Educação Inclusiva”. Que análise faz desta legislação e da forma como tem sido implementada e assumida pelo sistema educativo?
JC: Eu fui e sou muito crítico deste diploma legislativo bem como de muitas das alterações introduzidas pela Lei 116/2019 que em alguns casos criou ainda mais confusão no que se refere ao entendimento do pretendido tanto quanto à organização de serviços, como às próprias práticas. Uma lei que permite muitas interpretações não é clara. Nela inscrevem-se de forma ambígua alguns conceitos e modelos de ação. Para além disso, não se teve em conta a necessidade de “apetrechar” os professores e as escolas com os saberes e os instrumentos necessários e em consonância com os modelos de ação que se defendem, por exemplo o caso do modelo multiníveis. A forma como foram inscritos na legislação e são explorados só aumentaram a burocracia, a confusão e o pouco rigor relativamente à sua implementação.
Os números mostram que o objetivo de diminuir o número de alunos encaminhados para a Educação Especial, tendencialmente não se mantém. Para não me alongar muito com números e dados, lembro as estatísticas do Ministério da Educação, o último estudo do CNE, alguns estudos que vão sendo publicados, como o da FENPROF.
A própria OCDE, no seu relatório de avaliação, refere que este normativo está a ser entendido como mais uma legislação para a Educação Especial, e refere desafios quanto às discrepâncias entre organizações escolares e zonas geográficas, às práticas de colaboração, aos financiamentos, etc. Permitam-me usar uma metáfora: ninguém coloca em causa ou interpreta de diversas formas o código da estrada. Ninguém nega que o sinal STOP obriga a parar, claro que depois alguns condutores poderão parar mais ou menos abruptamente, mas exige-se-lhes que parem. Embora exista liberdade para desenhar as rotundas tendo-se em conta o contexto físico e cultural, ninguém nega as regras da circulação nas mesmas. O Decreto-lei 54/2018, surge porque havia muitas críticas, até internacionais, à legislação anterior, mas a verdade é que algumas das barreiras e entropias mantêm-se e, em alguns casos, até aumentaram.
É crescente a retórica relativamente ao conceito de educação inclusiva. Cada nova legislação é apresentada como “um mundo novo” que movimenta toda uma “máquina”, muitas vezes, com sentido endogâmico. As organizações tendem a responder reactivamente, mantendo-se acomodadas. São escassas as escolas que privilegiam as reflexões críticas, objetivas e alicerçadas na realidade. Depois temos interesses que se movimentam, de forma mais ou menos clara, cada vez que se tenta refletir criticamente sobre estas questões. A própria academia tende a denotar comportamentos reativos e de acomodação, sendo mero eco de um discurso formatado. Continuam a predominar processos de avaliação baseados em pressupostos classificativos, a ênfase em modelos de remediação e de “discrepância” e a manutenção de “guetos nas escolas” tantas vezes mimetizando as práticas e os modelos das instituições de Educação Especial.
É premente uma visão abrangente e integradora do sistema educativo tanto ao nível das políticas, nomeadamente da legislação, como das práticas. É tempo de fazermos um compasso de espera que preveja momentos formais de reflexão que possibilitem a objetividade de decisões. Envolver as escolas, os professores, os assistentes operacionais, os pais, etc. As mudanças devem ter o seu epicentro nas escolas. A mudança deve acontecer da base para o topo, num movimento consistente, reflexivo, critico e consensualizado. A inclusão nunca acontecerá com base em calendários conjunturais e assentes em “reflexões de capelinha”.
JH: Os professores de Educação Especial têm visto as suas funções alvo de diversas interpretações e a aplicação do seu estatuto varia mediante os Agrupamentos. Como vê o papel destes docentes e da própria Educação Especial, no apoio específico e na promoção de uma Educação Inclusiva na nova realidade das escolas e como seriam as suas atribuições e formação?
JC: A ambiguidade das funções dos professores de Educação Especial decorre de muitas das contradições que referi anteriormente. Tem havido clara desvalorização de conquistas realizadas nestes 50 anos e do papel de muitos dos seus agentes da “linha da frente”.
As repercussões da forma como é entendida e disponibilizada a formação especializada e contínua, tem impactado negativamente na função dos professores. Parece haver uma crise de identidade profissional.
Em minha opinião não existe contradição entre a assunção de um sistema educativo inclusivo e a ação dos professores de Educação Especial nas escolas, mas a realidade por vezes nega esta minha perceção. As causas são múltiplas: a formação e os discursos retóricos e de circunstância que começam e acabam na legislação, fragilizam as reflexões críticas, verdadeiras alavancas de mudança em contextos concretos, ou seja, nas escolas. Os professores de Educação Especial continuam, em meu entendimento, a ser peça chave, na colaboração em ações de gestão do currículo, de diferenciação pedagógica, na avaliação diferencial de alunos, mas também na avaliação de processos, no trabalho direto e específico com alunos com condições mais complexas, na organização de contextos de maior participação. O trabalho dos professores de Educação Especial tem uma dimensão de ação no todo da escola, como qualquer outro professor, mas não deve negar funções específicas que não se coadunam com a manutenção de “salas gueto” (sem negar a necessidade de algumas escolas terem espaços específicos para determinado tipo de ações), com explicações a alunos com dificuldades de aprendizagem, etc. Os professores de Educação Especial não podem ser guardadores de alunos de condição física, emocional e comportamental mais complexa. Guardadores e únicos responsáveis por alunos que a escola, na prática, continua a olhar como sendo “alunos com defeito”. Infelizmente, a realidade em mutos escolas, paradoxalmente mesmo em algumas onde os discursos institucionais são sistematicamente adornados com a palavra inclusão.
As comunidades são diversas e as escolas devem refletir e responder à diversidade. As escolas devem ser completas. Escolas onde os papéis dos professores são diferenciados, mas todos são importantes, assim como os assistentes operacionais, os encarregados de educação e até mesmo outros profissionais como os de saúde. Agentes que têm papéis diferentes, mas às vezes funções semelhantes. Tem que haver colaboração entre os diversos professores, entre os diversos profissionais e entre os diversos serviços. A realidade avisa-nos que não é pelo facto de a legislação prescrever a manutenção de uma equipa multidisciplinar que a ação se revela mais multidisciplinar e colaborativa. Nem as práticas assumem cariz pedagógico em detrimento da vertente médica e classificativa ou os processos de avaliação tornam-se mais diferenciais e menos classificativos e com menor pendor de elegibilidade para a Educação Especial. Também não é por a legislação prescrever a possibilidade de Planos de Saúde, que existe mais colaboração e proximidade de trabalho e reflexão com os serviços de saúde.
Não há escola sem alunos, mas também não há sem professores, bem comos sem outros agentes educativos. Para que a escola seja mais inclusiva e potencie a participação e equidade, todos os agentes são importantes, em colaboração, na partilha de uma linguagem e princípios comuns. A colaboração é essencial, assim como o é a formação, inicial, contínua e especializada e a reflexão crítica.