Educar para a Paz em tempo de guerra
De um breve historial à educação como ato de resistência e ao questionamento dos caminhos para a paz
Lígia Calapez | Jornalista
Três abordagens distintas confluíram para um mesmo tema, “Educar para a Paz em tempo de guerra”, 5º debate promovido pela FENPROF no quadro do Ciclo de debates de 2025, realizado a 26 de março. "A cultura da Paz e a importância da Educação para a Paz", um breve historial do movimento pela paz em Portugal, por Armando Farias, do CPPC. "Guerra e Paz", uma intervenção de João Jaime, da Escola Secundária de Camões onde integrou órgãos de direção e foi diretor, numa perspetiva do papel da escola. "Pela Paz... mas que Paz?", um questionamento sobre os fundamentos e condições da própria paz, por Mariana Avelãs, mestre em literatura Irlandesa e professora.
Numa intervenção de abertura, José Costa, secretário-geral adjunto da FENPROF e presidente do SPGL, sintetizou, de algum modo, o atual panorama internacional. Sublinhando o papel da escola.
“Estes são os tempos perigosos que estamos a viver. São tempos em que a procura de soluções para a paz é um desafio que se coloca a todos nós. As escolas têm também aqui um papel fundamental”, considerou. E lembrou que educar para a paz é um ideal, “expresso na Declaração Universal dos Direitos Humanos que subscrevemos”.
O Estado português tem esse compromisso, como subscritor das recomendações da UNESCO. Um compromisso “que dá diretrizes muito claras no sentido de integrar, até nos currículos, a educação para a Paz e contra o discurso do ódio”, sublinhou. Para tal seriam necessários meios, nomeadamente a formação, “que permitisse aos docentes e aos outros profissionais de educação, implementar este compromisso nas escolas, em particular nos seus projetos educativos”. E também aqui falha o financiamento, continua o desinvestimento, como no que respeita, em geral, às funções sociais do Estado.
Um breve historial do movimento pela Paz em Portugal
“Antes do 25 de Abril, houve importantes movimentos para a paz em Portugal, neste caso com especial incidência na luta contra a guerra colonial”, lembrou Armando Faria. Um movimento em sintonia com movimento surgidos, com particular expressão, na sequência da Segunda Guerra Mundial. “Um movimento muito, muito diverso, incluindo muitos intelectuais, diversas personalidades, confissões religiosas, movimentos políticos, sindicais”.
Em abril de 1976, foi criado o Conselho Português para a Paz e Cooperação (CPPC), cujo papel essencial tem sido “desenvolver uma cultura de paz assente na participação e na promoção de um vasto conjunto de iniciativas e atividades, sempre no sentido de consciencializar, influenciar a participação ou debate para estes temas da paz”. Desde encontros pela paz, como o que deverá ter lugar este ano em 31 de maio, no Seixal, a diferentes manifestações artísticas.
Neste quadro, “as escolas têm sido um lugar privilegiado”, em que “se discuta com os nossos jovens as questões da paz. Procurando que eles percebam o conceito da paz, que percebam que o conceito da paz não significa apenas a ausência de guerra, mas que paz significa nós estarmos bem com todos aqueles que estão em nosso redor”.
A educação é sempre um ato de resistência
“Atualmente, estamos perante um aumento das hostilidades em várias regiões do mundo. Assistimos a uma desumanização que resulta não apenas da violência física, mas também da desinformação, do preconceito e da falta de diálogo”, começou por contextualizar, João Jaime.
Ensinar para a paz “implica desenvolver uma cultura de respeito e solidariedade que se contraponha à lógica de divisão e ódio. A educação para a paz deve ser inclusiva, expondo as desigualdades que alimentam os conflitos. Nesse sentido o respeito pelos direitos humanos e pela justiça social devem ser desenvolvidos através de projetos de aprendizagem que promovam o diálogo intercultural”.
Além disso, “é fundamental que o currículo incorpore temas relacionados com a resolução de conflitos, a cooperação e o trabalho de equipa, em substituição de um currículo como o atual, promotor da competitividade e individualidade”.
Com ou sem guerra, “a educação é sempre um ato de resistência”, considerou João Jaime. “Encorajar as novas gerações a sonhar com um futuro diferente e a acreditar na possibilidade de um mundo mais justo é fundamental. Somente através de uma educação transformadora poderemos construir pontes para uma sociedade mais justa.”
São múltiplas, e diversas, as guerras que vivemos neste momento. E João Jaime elencou a Fome (“As crianças morrem não apenas por balas, mas pela falta de comida e nutrição”); o Clima (“A crise climática é uma guerra silenciosa, onde são travados conflitos entre a exploração de recursos e a preservação do meio ambiente”); Fascismo - intolerância, o ódio, a ditadura; Educação para Todos (“A guerra pela educação é uma batalha que moldará o futuro das sociedades”).
“A guerra mais urgente no nosso tempo”, considerou, é “a luta pela preservação das democracias com liberdade num mundo cada vez mais polarizado e repleto de autoritarismos e os fascismos”.
Nesse sentido “ é urgente formar cidadãos críticos, formar jovens capazes de questionar, formar jovens que consigam percecionar a complexidade das relações humanas”. E impedir “o retrocesso do serviço militar obrigatório, impedir que esta corrida ao armamento na Europa volte a penalizar os serviços públicos, nomeadamente a educação, a saúde e a segurança social”.
E o que é necessário?
É necessário “educar para os direitos humanos e justiça social. É necessário um diálogo intercultural. É necessário valorizarmos as diferenças/diversidades. A resolução pacífica dos conflitos. Metodologias que orientem os alunos à procura de soluções coletivas para os problemas que enfrentam. Desenvolver capacidade de ouvir e compreender o outro”.
Tudo isto exige que a escola possa atuar com mais autonomia e flexibilidade. Exige uma verdadeira gestão democrática.
Exige, ainda, uma adequada formação de professores; melhorar os recursos humanos nas escolas; que a Descentralização de Competências (a maldita Municipalização) responda às necessidades das escolas; combater a politização das escolas com as interferências das autarquias, respeitando o Projeto Educativo da escola dentro da sua comunidade; trabalhar para uma escola inclusiva, considerando cada vez mais a diversidade da população escolar que está a aumentar; não temer a Revolução Digital (IA) – até onde vai a inteligência artificial, como se articula com o papel do professor, qual o papel do professor no futuro? o que significa aprender nos próximos anos?
Citando António Nóvoa - “A escola de futuro será feita de cooperação. Ninguém se educa sozinho”- João Jaime conclui: “Que a educação continue a ser um pilar fundamental para superar as guerras e construirmos um futuro melhor”.
Três temas para debater a Paz
Cruzando as experiências que viveu na Irlanda do Norte no início do processo de paz, ainda num espaço de guerra, com a de professora do ensino secundário público, em Portugal, Mariana Avelãs centrou a sua apresentação em três itens: não há paz sem conflito; não há paz sem justiça; não há paz sem participação.
Como ponto de partida da sua apresentação, Mariana Avelãs partiu da experiência dos KNEECAP, uma banda de rap da Irlanda do Norte, do Belfast, jovens de 30 anos, filhos do processo de paz. Para sublinhar que com a sua música “eles estão também constantemente a recordar que a paz se faz tendo consciência de que às vezes é preciso lutar para chegar lá”. Um elemento fundamental para compreender o esforço que se impõe numa luta que não termina.
Não há paz sem conflito. Com base em exemplos muito concretos, como a da separação entre escolas católicas e protestantes, na Irlanda, e as clivagens de bases socias, efetivamente existentes em Portugal (mesmo no ensino público), defendeu que “todas as bolhas criam, reiteram as explosões”, que todas as bolhas reproduzem ignorância e “a ignorância traduz-se sempre em violência”.
“Enquanto não tivermos a ideia de que o equilíbrio, que a diversidade, que potencia um conflito que todos podemos aprender a gerir, é fundamental para todos, vamos continuar a falar de paz, de educação e de direitos, mas vamos estar a falar só no papel”, sublinhou.
Não há paz sem justiça. Neste eixo integram-se problemáticas como o racismo e a xenofobia, ou a violência de género. O que ao nível da escola coloca, nomeadamente, questões como “olhar para as nossas turmas, identificar o modo como o programa que estamos a dar se reflete na turma que temos à nossa frente e ter estratégias para lidar com ele na prática”.
Não há paz sem participação. Em causa estão questões tão atuais e polémicas como a abolição dos telemóveis na escola. Neste domínio, Maria Avelãs tem uma posição clara: “Sou contra qualquer proibição, serei sempre contra qualquer desistência de educar, proibindo”. “Os telemóveis, a misoginia, a violência, fazem parte das nossas vidas, fazem parte da vida dos nossos alunos”, lembra. E sublinha: “Nós temos a obrigação de não fechar os olhos e não podemos nunca abdicar de educar. E quando dizemos que não é na escola que usam os telemóveis, estamos a mandá-los usar os telemóveis em casa, sem acompanhamento, ou com acompanhamento que mais uma vez vai reproduzir toda a desigualdade que existe na sociedade”.
Considerando que “a gestão democrática tende a esquecer a maioria das pessoas que estão nas escolas, que são os alunos”, Maria Avelãs defende “criar aquilo a que eu chamo de espaços plenos de significado, onde eles sintam que a escola é o espaço onde eles vão aprender a ser cidadãos. Connosco. Não contra nós, mas connosco”. O que requer “conhecermos as músicas que eles ouvem, identificarmos as referências culturais que eles, para o bem e para o mal, trazem para a escola”. Tentar encontrar formas de “partilharmos com eles as aprendizagens deles”, para “termos uma paz participada, em que sejam os próprios jovens a não admitir que a guerra seja uma opção”.
Texto original publicado no Escola/Informação Digital n.º 45 | março 2025