Economizar no necessário
No artigo “Cereais” (“grains”), escrito para a Enciclopédia do iluminismo francês do século XVIII, François Quesnay (1694-1774), máximo expoente da escola fisiocrática, defende que uma nação tem vantagem em exportar as mercadorias mais úteis e necessárias e importar em contrapartida mercadorias de luxo. Argumenta que esta troca a beneficia, porque “o interesse que os outros têm em vender é maior do que o seu interesse em comprar e aquela pode mais facilmente limitar-se no luxo que não os outros poupar no necessário”.
Apesar destas considerações terem uma validade limitada – o que determina a vantagem de um país sobre outros nas trocas internacionais não é o valor de uso ou utilidade dos bens transaccionados, mas o valor acrescentado determinado por uma composição tecnológica das suas exportações mais elevada – podem, no entanto, ilustrar a enorme dependência de Portugal relativamente à importação de cereais que não tem cessado de crescer desde a sua integração na União Europeia. Assim, em 1989, Portugal produzia 60% dos cereais para abastecer o mercado interno, um valor que caiu para 23%, em 2016, e 18%, em 2020. No final anos 80 do século passado, a área cultivada atingia 900 mil hectares, enquanto, em 2016, tinha caído para 257 mil hectares. Paralelamente, a produção de cereais registou também uma quebra, passando de 1,65 milhões para 1,1 milhões, um valor bem menor, o que revela uma baixa produtividade por hectare cultivado, em 1989, apenas 1,83 toneladas contra 4,2 toneladas em 2016, uma consequência das deficiências estruturais do setor agrícola nacional antes da integração na UE.
A guerra na Ucrânia com o aumento dos preços dos cereais agravou esta dependência do país, tendo em conta que em 2020/2021 o nível de abastecimento do país em trigo foi de apenas 6,8% e de 23,7% em milho. O Ministério da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento reconheceu, no preâmbulo de um documento elaborado em 2017 sobre a Estratégia para a Promoção da Produção de Cereais (ENPPC), que a queda brutal da produção de trigo “constituía uma singularidade no contexto mundial” (Fonte: Público 18 de Março de 2022), o que o levou a estabelecer metas para reduzir a dependência externa do país neste bem essencial. Em 2018, o nível de autoabastecimento em cereais devia atingir 38%, número relativamente modesto, embora aceitável, tendo em conta as condicionantes do passado já não tão recente. No entanto, em 2020, este atingiu 18%, apenas menos de metade daquele valor, o que revela que a ENPPC não foi até agora bem-sucedida.
Importa, entretanto, refletir sobre as causas deste fenómeno. Para alguns, foi a reforma da Política Agrícola Comum (PAC), em 2005, que esteve na origem da crise de abastecimento de cereais ao país. Esta reforma desastrosa, com o pretexto de eliminar os enormes excedentes de cereais e de outros produtos agrícolas, desmantelou as proteções de que a agricultura europeia beneficiava desde a formação da ex-Comunidade Económica Europeia (CEE), abrindo este setor à concorrência externa, segundo uma perspectiva neoliberal que considera os bens agrícolas mais necessários como meras mercadorias que podem ser adquiridas nos mercados internacionais a preços mais competitivos independentemente do grau de aprovisionamento de um país. Resultado: os enormes excedentes agrícolas da UE transformaram-se em défices, reforçando a dependência de alguns países da UE da importação do trigo russo e ucraniano.
No caso português, porém, a redução brutal da capacidade de autoabastecimento em cereais começa muito antes de 2005, precisamente com a integração na UE e sobretudo com a forma desastrosa como esta foi conduzida pelos governos de maioria absoluta do PSD de Cavaco Silva. Apesar das transferências do Fundo Europeu de Orientação e Garantia Agrícola (FEOGA), verificou-se uma redução dos rendimentos médios dos agricultores. Na primeira metade dos anos 90 do século passado, quando o efeito multiplicador dos fundos comunitários recebidos se começou a dissipar, o rendimento médio dos agricultores era apena 80% do que no período anterior à integração e representava apenas 17% da média dos países da UE na altura. Por sua vez, no que respeita aos cereais, as importações aumentaram mais de 50% entre 1987 e 1992, as de carne mais de 175%, as de leite e derivados mais de 80% e as de hortofrutícolas mais de 42% (o leitor pode ter acesso a estes dados no meu artigo “A Propaganda e a Realidade”, publicado no número 18-19 da revista Finisterra, disponível no site fundaçãorespublica.pt, link publicações/Finisterra, onde encontrará também outras análises sobre esse decénio perdido que importa recordar). Em entrevista ao DN, em 1985, antes da integração, o futuro primeiro-ministro, Cavaco Silva, afirmava com a empáfia tecnocrática que o caracterizava, que pretendia “afastar definitivamente a ideologia da agricultura e realizar uma verdadeira política agrária que aumentasse da produção e da produtividade”. No entanto, o seu governo de maioria absoluta, ao desmantelar antecipadamente as protecções de que a agricultura portuguesa poderia beneficiar no período de transição, iniciou um processo de erosão e declínio de setores, como os dos cereais, que produziam os bens mais necessários.
Este processo reforçou-se após a reforma da PAC, em 2005. Estabeleceu-se desde então um tipo de especialização que complementou o processo de aniquilação da cultura cerealífera, iniciada na segunda metade dos anos 80 do século passado. As extensas, mas pouco produtivas, searas alentejanas deram lugar à cultura intensiva de olivais e de frutos secos, enquanto na costa alentejana enormes estufas dedicadas à cultura de frutos vermelhos para a exportação consumaram um quadro geral em que o país vê substancialmente reduzida a sua soberania alimentar, que, apesar de tudo, nunca possuiu, ao contrário do que defendiam os mitos ruralistas do salazarismo. Tal como Quesnay defendia, Portugal economiza hoje no necessário para promover, em contrapartida, o negócio de uma agricultura de exportação de alto rendimento com impactos negativos sobre ambiente, destruidora de uma paisagem rural em que o trigo era a cultura dominante e que, no fundo, produz bens relativamente supérfluos para consumo externo na base de uma força de trabalho migrante sobre-explorada, enquanto as populações rurais ‘tradicionais’ são dizimadas pelo paradigma neoliberal dominante. Os resultados deste modelo desastroso, de que somos os maiores responsáveis, estão à vista: estamos cada vez mais reduzidos a um país de escravos do turismo de massa e de ‘resorts’ do turismo de luxo, cada vez mais dependente do parasitismo imobiliário rendista que nada produz, um país cada vez mais dependente do exterior para satisfazer as necessidades básicas da sua população.
Joaquim Jorge Veiguinha