Artigo:Direito à habitação, especulação imobiliária e turismo «low cost»

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Direito à habitação, especulação imobiliária e turismo «low cost»

No número 1 do artigo 65º, a Constituição da República Portuguesa (CRP) estabelece que «todos têm direito, para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.» No número 3 do mesmo artigo, a CRP preconiza que «o Estado adotará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria.»

Atualmente, ao que tudo indica, este artigo da CRP não passa de uma «letra morta», sem nenhuma aplicabilidade prática. É praticamente impossível para as famílias de rendimentos baixos e médio-baixos adquirirem uma casa na capital, já que tanto o preço dos imóveis para habitação de longa duração quanto o dos alugueres não estão ao alcance das bolsas destes cidadãos. A especulação imobiliária e a proliferação do alojamento de curta duração estão na origem do aumento exponencial dos preços de ambos que são consideravelmente superiores aos da média europeia. Um estudo publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos é muito claro a este respeito: tendo como ano base 2015, em 2021 o índice de preços do mercado de habitação em Portugal atingiu 168,84 contra apenas 137,53 da média da União Europeia (UE), enquanto as rendas ascenderam a 115,79 relativamente aos 110,02 da média da UE. A isto acresce ainda que o preço das habitações e dos arrendamentos em Portugal é significativamente superior aos de países como a Espanha, Itália e França com um nível de vida e salários superiores aos nacionais (Fonte: Público, 6/02/2023).

Estes números apontam para um modelo económico parasitário, ‘rendista’, em que as atividades produtivas, mesmo as mais elementares, desaparecem umas após outras, que não tem a mínima consideração pelos cidadãos  e que, a pretexto de uma pretensa «renovação urbana», promove o turismo «low cost», os empreendimentos imobiliários de luxo nos centros históricos e nas regiões costeiras, numa estratégia de privatização e mercantilização do espaço público que afasta cada vez mais os cidadãos de recursos médios, médios baixos e baixos para as periferias e as zonas periurbanas. O principal responsável por este saque imobiliário foi o governo PSD/PP de Passos Coelho que, através da famigerada «lei Cristas», liberalizou os despejos, criou os vistos gold e facilitou o acesso ao aluguer de casas aos nómadas digitais em detrimento da população com um reduzido ou mesmo médio poder aquisitivo. As gerações futuras, agora que os descendentes desta medíocre elite negocista se tentam branquear das suas políticas urbanas catastróficas, sofrerão na pele, se nada for, entretanto, feito para alterar esta situação, os elevados custos da irracionalidade e do desperdício da especulação imobiliária e da desertificação dos centros históricos das grandes cidades.

Numa entrevista de leitura imprescindível concedida ao DN em 6/02/2023, o presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, Miguel Coelho, que desde o início da «pandemia» do turismo «low cost», ao contrário dos que andam muito esquecidos ou se fingem esquecidos, tem denunciado esta situação insustentável, ataca as causas deste problema e propõe medidas alternativas para iniciar uma mudança de rumo. Defendendo um regime de benefícios fiscais que estimulem os proprietários a arrendar casas por mais de 20 anos, o que, porém, é manifestamente insuficiente, preconiza também a abolição dos vistos gold, bem como das obras profundas que servem de pretexto para expulsar os inquilinos de parcos recursos das casas que habitavam. Considera também que é preciso interditar a revogação de contratos de arrendamento de imóveis em risco de ruína quando se prova que o proprietário nada fez para o evitar. Repare-se que devem existir inúmeras casas em Lisboa em que os inquilinos são literalmente expulsos a pretexto de obras de restauração, mas em que vários anos depois estas permanecem desabitadas com o objetivo de valorização especulativa da área de construção, particularmente quando se encontram em zonas em que o custo por metro quadrado tende a subir cada vez mais.

Miguel Coelho defende que deve ser promovido «um regime de compensação de “X” por cento de casas para renda acessível», tanto mais que a proposta do Bloco de Esquerda de condicionar o aluguer de casas na capital a estrangeiros com elevado poder aquisitivo na capital não tem, apesar das suas boas intenções, viabilidade, não tanto porque  ponha em causa o direito de propriedade consagrado na CRP que não é um direito de «usar e abusar» sem componente social, mas porque entra em conflito com as regras em vigor de livre circulação de pessoas e serviços no seio da Eurozona.

Se nada for feito, e tendo em conta que o oceano Atlântico é o limite, a expulsão dos cidadãos das grandes cidades turísticas portuguesas para zonas cada vez mais distantes, poderá inevitavelmente contribuir para que, dentro de alguns anos, se retome a «gloriosa» gesta dos descobrimentos da «lusitana grei» que deu «novos mundos ao mundo», como rezava a propaganda salazarista. No entanto, como já está tudo descoberto, resta saber que país estará disposto a recebê-la. Eis como se poderá formar uma nova categoria de refugiados que se juntarão aos refugiados climáticos: os refugiados da «pandemia» da especulação imobiliária e do turismo «low cost».

Joaquim Jorge Veiguinha