Artigo:Dia Internacional da Abolição da Escravatura e das Vítimas do Tráfico Transatlântico de Escravos

Pastas / SPGL / Dep. Aposentados / Ação Sociocultural

Dia Internacional da Abolição da Escravatura e das Vítimas do Tráfico Transatlântico de Escravos

Comemorar este dia nos tempos conturbados que atravessamos tem um duplo significado: o passado e o presente entrelaçam-se inúmeras vezes por fios tecidos pela cobiça e avidez dos homens que, a qualquer preço, subjugam os mais fracos e desprotegidos, ignorando que a liberdade e a igualdade são direitos inalienáveis do ser humano.

Desde os primórdios da civilização que a escravatura, por razões diversas, existiu em todo o mundo. Com a expansão marítima e consequente exploração das terras conquistadas pela Europa, a partir de quatrocentos, teve início o tráfico de escravos transatlântico e o esclavagismo de forma intensa. A título de exemplo, segundo José Capela, só em Portugal entraram 3598 "peças” entre os anos de 1440/60 pois por deliberação das cortes os escravos vinham para a metrópole e só depois eram vendidos para a Europa, em especial para Espanha e Itália. Portugal deteve o monopólio dessa venda   entre os anos de 1440 e 1640. De acordo com a Crónica da Guiné, os navegadores faziam incursões na costa a fim de capturar indígenas que a breve trecho se refugiaram no interior. Surgiram, então, negociantes locais que aprisionavam os fugitivos, tornando-se traficantes dos seus irmãos de cor, que vendiam aos navegadores em troca de produtos que não possuíam.

Por sua vez, os espanhóis foram os principais fornecedores dos Estados Unidos durante os séculos XVIII e XIX, onde a abolição só foi conseguida em 1865 com a Emenda 13 de Abraão Lincoln, após uma guerra brutal - Guerra da Secessão - que opôs o norte industrializado ao sul agrícola - onde 50 % da população era constituída por escravos.  Pelo artigo suplementar 14 foi dada a igualdade a brancos e negros, mas só em 1870 conseguiram a igualdade de direito eleitoral.  Ainda hoje, preconceito e racismo são manifestações frequentes que demonstram o atavismo da segregação racial nos Estados Unidos, durante aqueles tempos de violência.

Também no Brasil, esse preconceito é patente na estrutura da sociedade actual, dado que a passageira prosperidade económica de oitocentos assentou na acumulação de capital gerado pela mão de obra escrava negra africana, uma vez que os índios não resistiam aos trabalhos exigidos e beneficiavam da proteção dos Jesuítas. Assim se desenvolveu o tráfico negreiro entre a costa ocidental africana, em especial de Angola, tráfico intenso que, não abrandou em 1761, mesmo quando o Marquês de Pombal aboliu a escravatura na metrópole e nas ilhas dos Açores e Madeira. Favoreceu sim, o desvio dos negros africanos para o Brasil, onde a sua força era usada na exploração mineira e no cultivo da cana sacarina. Desta política económica resultou uma relação atávica entre negritude e trabalho forçado, vida dura sem privilégios versus senhorios, donos de engenhos. A fuga era, muitas vezes, a solução encontrada, pois a alforria nem sempre era possível. Assim se criaram os quilombos, pequenos aglomerados onde se abrigavam   para trabalhar livremente, tendo servido também de centros de resistência contra seus donos e as populações. Antes da independência desta ex-colónia, só nos anos cinquenta do séc. XVIII, goradas que foram as tentativas do Marquês Sá da Bandeira na década anterior de extinguir a escravatura, conseguiu a completa abolição através de dois decretos datados e 1854 e 58. Este último fixava o prazo máximo de 20 anos para o fim do esclavagismo, espaço temporal que visava facilitar a alforria. Não obstante também o referido decreto não resultou. Os negreiros furtavam-se ao cumprimento da lei com a conivência das autoridades ainda que sujeitos às sanções da Inglaterra. Já depois da independência dada por D. Pedro II na regência da princesa Isabel, foi abolida a escravidão com a assinatura da Lei Áurea, em 1888. Tal como nos Estados Unidos, a imagem do escravo associa-se à cor da pele, à pobreza e à discriminação. Cerca de 5 milhões de africanos foram levados para o Brasil em 300 anos, tendo sido submetidos a práticas atrozes e tão desumanas que incluíam até a morte. Foram várias as revoltas de escravos e a Lei Áurea não foi um acto de humanidade, mas sim uma conquista obtida pela reivindicação e pela luta, sem que posteriormente tivesse favorecido a sua inclusão no contexto social brasileiro.

Portugal e a Espanha foram, então, os últimos países da Europa a manter o regime esclavagista, enfraquecendo deste modo a sua posição colonial perante os outros países europeus. Foi em 1869 que Sá da Bandeira libertou os ainda escravos com a condição de servirem o dono até 1878, passando depois à condição de libertos.

Inúmeros são os testemunhos que relatam a condição desumana e cruel em que os escravos viviam e como eram transportados. Os donos das embarcações conseguiam transportar “encurralados... em barcos de menos de vinte toneladas de porte... nada menos que 105 crianças, as mais velhas de sete anos de idade, acamadas como pacotes de algodão entre as cobertas do navio."

“No navio português - CORISCO - 392 escravos ...se encontraram empilhados dentro do seu casco de oitenta tonelada. Nestas condições muitos não chegavam com vida ao destino e de outros narra o mesmo autor: ... a maior parte deles pareciam esqueletos animados e achavam-se acometidos de bexigas e de sarna."

Uma vez chegados ao porto eram remetidos para pátios ou armazéns onde aguardavam ser comprados como "peças". Os já habituados a tão costumeira desumanidade pareciam resignados, "mas os seus corpos apresentavam provas evidentes do bárbaro sofrimento que haviam sofrido e meios mortos de fome ou quase reduzidos a esqueletos traziam nas costas nuas os sinais da tirania dos seus possuidores."  

Outras descrições encontramos na literatura sobre o tema, igualmente cruas e revoltantes. Falar em escravidão parece, pois, assunto do passado. Porém, outras formas de esclavagismo vão surgindo com outras rotas que não as que foram objeto de reflexão. As desigualdades sociais, não obstante a tão proclamada “Declaração dos Direitos do Homem”, os conflitos políticos e a pobreza estão na origem desta prática ilegal e desumana. Urge, pois, tomar medidas e intervir como cidadãos conscientes enquanto o fenómeno não alastra e se torna prática comum, como o foi ao tempo da colonização.                                               

Everilde Pires