Artigo:Denis, ‘Le Philosophe’ por Joaquim Jorge Veiguinha

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“Os meus pais deixaram atrás dele um filho a quem chamaram Denis o filósofo: sou eu” (Hazard, II, Lisboa, 1974, p.221). Esta epígrafe define singelamente a identidade de Denis Diderot nascido em Langres, em 5 de outubro de 1713, de Didier Diderot artesão, fabricante de facas mas também proprietário de terrenos agrícolas e de casas nesta pequena cidade, e de Angélique Vigneron, filha de François Vigneron, comerciante de couros. Grande figura do iluminismo francês, este ‘provincial’ está indissociavelmente ligado à organização da Encyclopédie ou Dictionnaire Raisonné dês Sciences, des Arts et des Métiers (“Enciclopédia ou Dicionário Racional das Ciências, das Artes e Ofícios”), obra, que após uma série de percalços, vê a sua publicação desenvolver-se entre 1751 e 1772. Apesar dos sete volumes de estampas da Encyclopédie, as célebres ‘planches’, serem publicados no período 1767-72, o último tomo sairia, na realidade, na cidade italiana de Livorno, em 1779, após uma existência atribulada em que se combinam a revogação do seu privilégio de publicação, em 1759, a desistência de d’Alembert, o outro coorganizador da obra, em consequência dos ataques ao seu artigo ‘Genève’pelos meios eclesiásticos, a censura, em 1764, de artigos de Diderot pelo editor Le Bretton, assustado com as ideias do ‘philosophe’ que pudessem justificar a interdição definitiva do grande dicionário pelas autoridades e a proibição dos seis últimos volumes, em 1776, na região de Paris. Só em 1781, é publicada na cidade suíça de Lausana uma nova edição – finalmente sem interrupções – em 36 volumes duplos de texto e três de estampas, a que seguirá uma cópia desta em Berna, um ano depois. Sem o esforço, a dedicação e o empenhamento de Diderot quando muitos colaboradores abandonavam o empreendimento que esteve diversas vezes à beira do naufrágio, não seria possível que esta obra fundamental para compreender ‘l’esprit des lumières’ e o seu projeto de reformas sociais e políticas tivesse visto a luz do dia.

O novo filósofo

Diderot define-se como um ‘filósofo’. Mas o que é um filósofo para o novo espírito do século das luzes? Se consultarmos o artigo ‘Philosophe’ escrito por Dumarsais para o grande dicionário verifica-se que este nada tem a ver com um Montaigne, erudito encerrado na torre do seu castelo, pois singelamente é nada mais do que “um homem honesto que quer agradar e tornar-se útil” (Enciclopédia, II, Milão, 1966, p. 340). Também nada tem a ver com o asceta ou o estóico que se retira do mundo ou se refugia na sua esfera íntima para condenar e anatemizar os prazeres e as paixões humanas. A sua esfera de vida não é a cela monástica, a renúncia ao mundo ou o voto de pobreza que faz da frugalidade beata uma espécie de virtude cardeal. Pelo contrário, o filósofo é um homem não encerrado em si próprio, não virado para a especulação e meditação metafísicas, mas que pretende interpretar e a sociedade, propor alternativas, intervir como cidadão. Tudo isto assinala a sua especificidade, mas não lhe confere nenhum privilégio relativamente aos outros homens que não são filósofos. Ao contrário dos seus predecessores, «que se envergonhavam da sua humanidade, ele faz desta uma glória» (Ib., p. 340). Tal como os outros homens, “as suas necessidades e o desejo de bem-estar predispõem-no a viver em sociedade» (Ib., p. 340). Como a maioria destes não almeja acumular riquezas, mas apenas uma vida melhor, o que se traduz pela “justa medida do supérfluo necessário a um homem de bem e indispensável para ser feliz, para conduzir uma vida decente e agradável” (Ib., p. 341). Em suma, o filósofo não é um homem estranho ao mundo, pois as suas necessidades são as mesmas do que as da maioria dos outros: ele não é um ‘santo doutor’, como Agostinho e Tomás de Aquino, mas apenas um homem entre os homens.

 A política na Enciclopédia

A política, tal como as ciências, as artes e os ofícios, é uma temática que desperta a atenção e o interesse dos colaboradores da Encyclopédie e do seu diretor. Neste âmbito a posição de Diderot é quanto muito cautelosa, pois as questões políticas são assuntos controversos em que é necessário medir as palavras. De facto, uma contestação aberta da monarquia absoluta seria suicidária e, por conseguinte, conduziria não apenas à proibição definitiva da obra, mas também à prisão de autores e colaboradores. Não surpreende portanto que não fossem os artigos políticos do grande dicionário que suscitaram os ataques mais violentos do ‘partido devoto’, a corrente mais conservadora do ‘establishment’ da época, envolvido, juntamente com as ‘chambres assemblées’ do Parlamento de Paris na proibição das obras ‘malditas’, como, por exemplo, o ensaio De l’esprit de Helvétius e do grande dicionário cujo privilégio de publicação foi revogado em 8 de março de 1759, na sequência de uma ofensiva conservadora e beata que condenou à fogueira, em 6 de Fevereiro, do mesmo ano De l’esprit juntamente com outros livros considerados ‘sediciosos’.

Fruto da moderação política dos enciclopedistas, é o artigo ‘Autorité Politique’ escrito por Diderot, embora o seu autor não tenha feito grandes concessões aos apologistas da monarquia absoluta e demonstrado os limites da tese oficial sobre a origem divina do poder dos reis. O organizador da Enciclopédia contorna inteligentemente esta questão candente, pois considera que Deus “consente para o bem comum e a conservação da sociedade que os homens estabeleçam entre si uma ordem de subordinação, que obedeçam a um deles; mas quer que tal seja feito com razão e medida, não cegamente e sem reservas, para que a criatura não se atribua a si própria os direitos do criador” (Ib., p. 124).

Esclarecido este ponto, o filósofo defende que o poder político legítimo deve ter um fundamento consensual, pois “nenhum homem recebeu da natureza o direito de comandar os outros”. Isto significa que “o poder adquirido com a violência é apenas uma usurpação e dura apenas enquanto a força do que comanda é superior à dos que obedecem”. Neste caso, sempre que a relação de forças se altera é legítimo o derrube do governo, porque “a mesma lei que tinha feito a autoridade destrói-a agora: é a lei do mais forte” (Ib., p. 124).

Neste artigo Diderot reflete a opinião dominante dos enciclopedistas sobre a forma de governo mais adequada. O seu modelo não é, como em Rousseau, a república, mas uma monarquia constitucional em que o rei não é um senhor absoluto, mas detém apenas um poder delegado que provém de um pacto com os súbditos. Não se trata, porém, de um ‘pacto de associação’, como defende Rousseau no seu célebre Contrato social, mas do tradicional ‘pacto de submissão’, rejeitado pelo genebrino, em que os súbditos se comprometem a obedecer ao monarca desde que este não rompa o consenso político, isto é, não governe de forma arbitrária sem respeito pelos direitos de quem, na prática, lhes delegou o poder.

Apesar de, formalmente, defender a monarquia, o autor apoia vigorosamente a limitação do poder do monarca, de tal modo que, se excetuarmos o pacto de submissão, quase poderíamos dizer que subscreve, nas entrelinhas, um governo republicano. Neste sentido, observa que “o governo, se bem que hereditário, e mesmo nas mãos de um só, não é um bem privado mas público que, por conseguinte, não pode ser subtraído ao povo a quem só pertence essencialmente e a título de propriedade absoluta” (Ib., p. 125). Na prática, o soberano não é o monarca, mas o povo, já que o primeiro detém apenas o poder executivo que lhe foi delegado pelo pacto que instituiu os limites da sua autoridade política. Mas isto significa que “a coroa, o governo e a autoridade pública são bens de que o corpo da nação é proprietário e de que os príncipes são usufrutuários, os ministros e os depositários” (Ib., p. 125). Em suma, cai definitivamente a máxima de Luís XIV, ‘L’État c’est moi’: “Não é o Estado que pertence ao príncipe, mas sim o príncipe que pertence ao Estado” (Ib., p. 125).

Contra Frederico II

Apesar da ‘moderação’ do seu artigo ‘Autorité politique’ do grande dicionário iluminista, Diderot permanece sempre um inconformista e um rebelde que nunca desiste de denunciar a tirania e o despotismo dos monarcas absolutos. Que melhor prova deste inconformismo do que as Pages inédites contre un tyran (“Páginas inéditas contra um tirano”), publicadas postumamente apenas em 1937? Esta obra é uma defesa do Essai sur les préjugés ou de l’ influence des opinions sur les moeurs des hommes (“Ensaio sobre os preconceitos ou da influência das opiniões sobre os costumes dos homens”), escrito em 1750, ao que tudo indica por Dummarsais, colaborador da Enciclopédia, e publicada por d’Holbach, em 1770, a quem alguns atribuem também a autoria. Esta obra foi violentamente atacada por Frederico II, soberano com algumas pretensões literárias e polemistas, que, em 1741, tinha publicado uma refutação do Príncipe de Maquiavel.

No seu Examen sur l’essai sur les prejugés (“Exame do ensaio sobre os preconceitos”), o monarca prussiano desmascara-se completamente, confirmando uma vez mais que a possibilidade de converter os déspotas ‘iluminados’ a um regime em que a liberdade, os direitos e a dignidade dos seres humanos são respeitados e garantidos institucionalmente não passa de uma quimera. O Examen revela, pelo contrário, a hipocrisia de um detentor do poder absoluto que tem como referência aquele ministro do rei de França que, segundo o sobrinho do compositor Jean-Philippe Rameau, defendia que “nada era mais útil aos povos do que a mentira; nada de mais nocivo do que a verdade” (Diderot, Paris, 1967, p. 38). Neste sentido, Frederico II afirma que “a experiência mostra-me o homem em todos os séculos na perpétua submissão ao erro, o culto religioso dos povos baseados em fábulas absurdas, acompanhado por rituais bizarros, por festas ridículas e por superstições … O que é que devo concluir senão que é feito para o erro?” (Diderot, Turim, 1980, nota 8 à p. 129).

Pelo contrário, Diderot considera que a transparência e a verdade constituem os princípios a partir dos quais se deve construir uma nova política. Por conseguinte, estamos já muito para além da política palaciana – ainda presente em Maquiavel e nos apologistas da ‘razão de Estado’ – feita de dissimulação e intriga e baseada no uso repetido do engano e da mentira como forma de ludibriar e manipular os povos para os manter na submissão. Para o nosso filósofo,”quem diz que a verdade não é feita para o homem, e pega na pena em defesa da verdade, é o mais incoerente dos homens; quem escreve que o homem é feito para o erro é o mais absurdo dos homens” (Ib., pp. 128-29). Não seria absurdo, interroga-se, se um predicador, metendo-se na pele de Frederico II, subisse ao púlpito para pronunciar estas ‘edificantes’ palavras: “«Homens não sois feitos para a verdade, a verdade não é feita para vós?» não deveríamos voltar-lhe as costas e deixá-lo predicar sozinho? E se alguém na audiência lhe demonstrasse o carácter falacioso dos seus argumentos: «o que fazes aí, ó desenfreado tagarela? O que dizes é verdadeiro ou falso: se é falso está calado; já existem demasiadas falsidades sem as tuas; se é verdadeiro, não é feito nem para ti nem para nós” (Ib., p. 129). Em contraponto, o iluminista Diderot defende que “os erros passam, apenas o verdadeiro permanece. Em consequência, o homem é feito para a verdade; a verdade é feita para o homem, visto que este a persegue sem descanso; abraça-a quando a encontra; não quer e não pode separar-se desta quando a encontra” (Ib., pp. 127-28).

A efemeridade da mentira é também a efemeridade dos tiranos e dos déspotas que dela se servem para perpetuar o seu poder e tentarem convencer os povos submetidos que não há alternativa ao seu domínio. Dirigindo-se ao autor do Essai sur les prejugés, Frederico II pergunta-lhe: “Como, senhor filósofo, protetor dos costumes e da virtude, ignorais que um bom cidadão deve respeitar a forma de governo sob a qual vive?” (Ib, p. 133, nota 18). Este apelo ao conformismo perante a ordem estabelecida, seja ela qual for, como se de um destino inexorável se tratasse, é o maior inimigo da emancipação dos povos que se alimenta do medo à liberdade e da renúncia ao espírito crítico. Diderot, o rebelde, não poderia deixar sem resposta esta nefasta apologia de uma forma de governo sob a qual a contingência de circunstâncias que não controlamos nos obrigaram a viver, pois, tal como a vida, ou mais ainda do que ela, esta é efémera, se tivermos em conta que a obediência e a submissão têm limites que serão ultrapassados quando se tornarem evidentes as injustiças que visam perpetuá-las: “O que é que significa para vós respeitar a forma de governo sob a qual se vive? Entendeis que é necessário submetermo-nos às leis da sociedade de que somos membros? Não existem dificuldades para isto; pretendeis que se estas leis são más seja necessário estarmos calados? Será provavelmente a vossa opinião; mas como poderá o legislador reconhecer o vício da sua administração, a imperfeição das suas leis, se ninguém ousar levantar a voz? E se por acaso uma destas leis detestáveis desta sociedade decretasse a pena de morte contra quem ousasse atacar as leis seria preciso curvarmo-nos sob o jugo desta lei” (Ib., p. 133).

Eis aqui uma manifestação do espírito indomável de rebeldia de Diderot, uma das facetas mais fascinantes do seu carácter e da sua personalidade. No entanto, depreende-se também da sua resposta a Frederico II uma grande dose de voluntarismo: bastará que alguém ouse levantar a voz para que o edifício milenar do despotismo seja posto em causa e comece a desmoronar-se como um castelo de cartas? Quantos deverão levantar a voz para que a resistência e a rebelião contra a ordem política instituída se torne eficaz e produza resultados? Iluminista, Diderot deixa esta questão sem resposta. Ele continua a partilhar com os seus colaboradores da Enciclopédia a ilusão de que apenas o esclarecimento das elites pela sabedoria dos filósofos poderá contribuir para erradicar as raízes da submissão e opressão estabelecidas: “Pela aversão revelada pelo crítico [Frederico II] por quem toma a liberdade de dar algumas lições ao ministério, dá-me a impressão de ele não estar entre os que se preocupam com o abuso da autoridade. Se estivesse mais atento – condição que se pode exigir a quem quer que aspire ao ofício de pensador –, aperceber-se-ia que se iluminam quase inutilmente os estratos subalternos se permanecem vendados os olhos daqueles dez ou doze indivíduos privilegiados que dispõem da felicidade da terra. É sobretudo estes que é preciso converter. Enquanto estes indivíduos forem cegos e malvados, não existirão virtudes estáveis e costumes. Os costumes bons ou maus consistem na observação das leis; os bons costumes na observação das boas leis; os maus costumes na observação das más leis” (Ib., p. 132).

A denúncia da exploração do trabalho

Escrita em Haia entre Abril e Setembro de 1774 após o regresso de Diderot da Rússia, reelaborada mas não publicada em 1775, a Refutation suivi de l’ouvrage de Helvétius intitulé de «L’homme» (“Refutação seguida da obra de Helvétius intitulada «O homem»”) retoma e aprofunda a crítica diderotiana à monarquia absoluta. Esta Refutação, apesar de dedicar a maior parte das suas páginas à concepção geral do mundo do filósofo Claude-Adrien Helvétius (1715-1771), tem importantes passagens onde as temáticas políticas e sociais despertam a sua atenção. Para além do tema recorrente da crítica do despotismo e do governo arbitrário, Denis é uma das raras figuras intelectuais do século das luzes a tomar consciência dos problemas laborais sepultados no esquecimento e a denunciar vigorosamente o trabalho embrutecedor e sobre-explorado ainda antes da eclosão da primeira revolução industrial. O organizador da Enciclopédia é também um dos primeiros a criticar o otimismo iluminista sobre a evolução tecnológica e o desenvolvimento das necessidades como fontes da prosperidade geral.

A obra de Helvétius suscita-lhe interrogações e dúvidas sobre estes temas. Enquanto para o autor de L’homme, “o tédio é um mal quase tão temível como a indigência” – afirmação a que não é estranha, provavelmente, o seu cargo de ‘fermier général’ que o livrou de dificuldades económicas por que muitos ‘philosophes’ passaram –, Diderot considera, em contrapartida, que “este é o argumento de um rico que nunca teve que se preocupar com o almoço” (Ib., p. 476). O nosso filósofo não se limita, porém, a contrapor como alternativa ao ócio que gera o tédio o trabalho em geral. Denis é um dos primeiros intelectuais a aperceber-se da exploração do trabalho e do trabalho alienado, a tomar consciência que existem na sociedade da sua época inúmeras atividades laborais que não apenas se baseiam na sobre-exploração e embrutecimento do trabalhador, mas contribuem também para a sua morte prematura. Dirigindo-se a Helvétius replica-lhe: “Nunca haveis pensado a quantos desgraçados a preparação da cal de alvaiade, o transporte de madeira na corrente dos rios, a limpeza das fossas causam doenças horrorosas e provocam a morte?

Apenas os horrores da miséria e o embrutecimento podem reduzir o homem e semelhantes trabalhos” (Ib., p. 484).

Na sua viagem para São Petersburgo Diderot contornou as famigeradas minas de Hartz, perto de Leipzig, já visitadas pelo seu compatriota Monstesquieu. A sua descrição das condições de trabalho dos mineiros revela que o inferno na terra é possível: “As minas de Hartz escondem nas suas profundezas milhares de homens que mal conhecem a luz do sol e que raramente atingem os trinta anos. Aqui encontram-se mulheres que tiveram doze maridos: se fechais estas enormes tumbas, arruinais o Estado e condenais todos os súbditos da Saxónia a morrer de fome ou a emigrar.

Quantas oficinas na própria França, menos numerosas mas quase tão funestas” (Ib., p. 485).

Tendo em conta estes casos, é lícito que Diderot se interrogue sobre o sentido da ideia do progresso. Se é este o preço a pagar pelo progresso, não será que a industriosidade do homem está mal dirigida e se terá excedido a si própria? Se é certo que não defende o retorno às florestas e ao estado selvagem, não se deixa também seduzir pelos que não se cansam de fazer a apologia do estado civil e da civilização com o seu cortejo de superfluidades e necessidades fictícias que só alguns podem satisfazer e adquirir à custa do duro trabalho dos outros: “Os antigos legisladores conheceram apenas o estado selvagem. Um legislador moderno mais iluminado do que eles, que fundasse uma colónia nalgum ângulo remoto da terra, encontraria provavelmente entre o estado selvagem e o nosso maravilhoso estado civil uma via intermédia que retardaria o progresso do filho de Prometeu, que o protegeria do abutre, e colocaria o homem civil entre o estado de infância do selvagem e a nossa decrepitude” (Ib., p. 487).

 Os taitianos e os civilizados

Em 1772, é publicada a Voyage autour du monde (“Viagem à volta do mundo”) de Antoine Bougainville. Neste livro a descrição dos costumes dos habitantes das ‘ilhas afortunadas’ do Taiti e o seu contraste com os dos homens pretensamente civilizados despertou na época um grande interesse e curiosidade. Diderot não ficou indiferente à obra de Bougainville. No ano da sua publicação iniciou a redação do Supplément au voyage de Bougainville que reelaborará em 1778-79. Nesta obra aprofunda a análise do estado civil, já iniciada na Refutação de Helvétius. A sua análise coloca novas questões e interrogações pela sua crítica à propriedade privada e à família patriarcal e a comparação entre a comunidade primitiva dos taitianos e a civilização, representada pela sociedade do seu tempo histórico, mas que vai mais longe, pois pretende ser uma crítica geral da vida dita “civilizada”.

Logo nas primeiras páginas do Supplément, Diderot analisa o estado civil baseado na institucionalização da propriedade privada, concebida como a principal fonte dos antagonismos sociais que o transformam não num estado de paz e concórdia, como defendem a maior parte dos seus contemporâneos, mas num estado de guerra latente e declarado: “Todas as guerras nascem de uma pretensão comum à mesma propriedade. O homem civilizado tem uma pretensão comum, com o homem civilizado, à posse de um campo cujas duas extremidades ocupam; e este campo torna-se um motivo de disputa entre eles” (Diderot, Paris, 19172, p. 145).

O Supplément é escrito sob a forma dialogal, género literário muito utilizado por Diderot que foi um dos seus mais finos cultores, em que participam dois leitores da obra de Bougainville, designados por A e B, o capelão da fragata La Boudeuse que fez a viagem à volta do mundo, um ancião do Taiti e um taitiano mais jovem, Orou. Apesar de representar a tradição da ‘ilha afortunada’, o ancião não pode ser considerado um “velho do Restelo”. Este defende os valores e os costumes dos taitianos em contraste com os dos europeus civilizados. Diderot inventa esta personagem para expressar a sua crítica à propriedade privada perante Bougainville que representa o homem civilizado: “Aqui” – afirma o ancião – “tudo pertence a todos e tu predicas-nos não sei qual distinção entre o teu e o meu. As nossas filhas e as nossas mulheres são comuns” (Ib., p. 148). Traduzidas por Orou, personagem meio real meio fictícia que Bougainville trouxe na viagem de regresso a França, estas palavras põem em causa os dois grandes pilares da civilização – mais tarde analisados por Lewis H. Morgan na obra A sociedade primitiva que inspirou a célebre Origem da família, propriedade e do Estado de Friedrich Engels – a propriedade privada e a família patriarcal.

Diderot foi um dos primeiros críticos do colonialismo e do tráfico negreiro. O Supplément é uma introdução à denúncia destes flagelos da Europa ‘civilizada’ da sua época que culminaria na Histoire des deux Indes, o livro mais vendido no século XVIII, e cuja autoria seria assumida pelo abade Raynal. Pela voz do ancião taitiano, o colonialismo europeu e a submissão dos povos autóctones ao poder sem freio dos que assumem a falsa pretensão de civilizá-los apenas para reforçarem o seu domínio das rotas mercantis e a exploração das suas riquezas é desmascarado sem concessões de nenhuma espécie: “Nós somos livres; e eis que tu cravaste na nossa terra o título da nossa futura escravatura. Não és nem um deus nem um demónio: quem és tu então para fazer escravos? Orou! tu que entendes a língua destes homens, diz a todos nós, como me disseste a mim, o que eles escreveram nesta placa de metal: Este país é nosso. Este país é teu! e porquê? porque meteste lá o pé? Se um taitiano desembarcasse um dia nas vossas costas, e que gravasse numa das vossas pedras ou na casca de uma das vossas árvores: Este país é dos habitantes do Taiti, o que é que pensarias? És o mais forte! E o que é que decorre disso? Quando te roubaram uma das desprezíveis bagatelas que enchem o teu navio, protestaste, vingaste-te; e no mesmo instante projetaste no fundo do teu coração o roubo de todo um país! Não és escravo: suportarás de preferência a morte do que sê-lo, e queres subjugar-nos!” (Ib., p. 148).   

Outra das características da civilização é o desenvolvimento das necessidades artificiais e fictícias que tornam os homens dependentes de um trabalho incessante e de uma fadiga permanente que lhes retira todos os prazeres do desfrute em troca de satisfações cada vez mais pueris e ilusórias que acabam por alimentar uma corrida aquisitiva que parece não mais ter fim. O ancião taitiano, através do seu compatriota e tradutor Orou, surge como o ‘emissário’ das ideias de Diderot sobre esta questão que já tinha sido esboçada na Refutação de Helvétius: “Tudo o que nos é necessário é bom, nós possuímo-lo. Somos dignos de desprezo porque não soubemos fazermo-nos necessidades supérfluas? Quando temos fome, temos de que comer; quando temos frio temos com que nos vestir. Entrastes nas nossas cabanas, o que é que aí falta em tua opinião? Procura até onde quiseres o que chamas comodidades da vida; mas permite a seres sensatos pararem, logo que tiverem apenas para adquirir, com a continuidade dos seus esforços penosos, bens imaginários. Se nos persuades a ultrapassar o estreito limite da necessidade quando acabaremos de trabalhar? Quando desfrutaremos? Tornámos a soma das nossas fadigas anuais e diárias a menor que fosse possível, porque nada nos parece preferível ao repouso” (Ib., pp. 148-49).

O outro taitiano, Orou, confronta-se com o capelão do navio defensor do celibato eclesiástico e da moral patriarcal. Neste diálogo Diderot transforma Orou num crítico da família patriarcal que marca a emergência do estado civil e da civilização perante a comunidade tribal da ‘ilha afortunada’ do Taiti. Denis, que já nos Entretiens avec Catherine II tinha defendido corajosamente o direito ao divórcio e tinha escrito, em 1773, o seu célebre romance A religiosa sobre o ostracismo social a que estava condenada a mulher proveniente de uma relação adúltera, reforça, no Supplément, a crítica aos preceitos da autoridade patriarcal considerados “contrários à natureza porque pressupõem que um ser pensante e livre, pode ser propriedade de um ser semelhante a ele. Qual seria o fundamento deste direito?” (Ib., p. 157). Esta argumentação defensora da igualdade entre homem e mulher tem um enorme potencial revolucionário, colocando Diderot na vanguarda do espírito das luzes, com uma posição mais avançada que a de Rousseau na esfera dos costumes. O organizador da Enciclopédia aprofunda a sua crítica da família patriarcal através da desmontagem da hipocrisia dos defensores da fidelidade conjugal forçada. Esta gera precisamente o seu contrário, a infidelidade dos cônjuges que já não se suportam reciprocamente, mas são constrangidos pela lei, a moral e os costumes oficiais ao suplício da coabitação forçada. Quando a mulher infiel é descoberta é submetida ao opróbrio e à censura da ‘boa sociedade’ que a marginaliza, enquanto o seu amante é visto como “um cobarde sedutor” (Ib., p. 160).

O capelão acrescenta que “os culpados que escapam à severidade das leis são castigados pela reprovação geral” (Ib., p. 159). B, outro dos participantes no diálogo que representa as posições Diderot sobre este tema, desmascara a artificialidade de uma ordem moral retrógrada, baseada na dissimulação e no culto das aparências, que acaba por potenciar ao máximo as paixões recalcadas que reprime e condena: “Logo que a mulher se torna propriedade do homem, e que o desfrute furtivo é olhado como um roubo, viu-se nascer os termos pudor, contenção, decoro; virtudes e vícios imaginários; numa palavra, barreiras entre os dois sexos que os impedissem de se incitarem reciprocamente à violação das leis que lhes tinham sido impostas, e que produziram frequentemente um efeito contrário, escaldando a imaginação e irritando os desejos” (Ib., p. 180).

Numa situação em que imperam a hipocrisia, a falsidade, a contenção das melhores facetas do carácter humano e o encorajamento das piores, o respeito cego pelas regras convencionais da moral dominante e dos costumes que sufocam toda a generosidade, anatemizam a igualdade como se tratasse de um crime de lesa-majestade e promovem relações de dependência e subordinação, A, o outro leitor do Supplément, pergunta a B, que, como vimos atrás, representa Diderot: “Mas, enfim, dizei-me, é preciso civilizar o homem ou abandoná-lo aos seus instintos?” (Ib.p 183). A primeira resposta de B é uma crítica radical ao processo civilizacional: “Se vós vos proposeis ser o seu tirano civilizai-o, fazei o vosso melhor para envenená-lo com uma moral contrária à natureza; fazei-lhe entraves de todas as espécies; estorvai os seus movimentos com mil obstáculos; ligai-o a mil fantasmas que o aterrorizam; eternizai a guerra na caverna, e que o homem natural esteja sempre acorrentado aos pés do homem moral” (Ib., p. 183).

Esta civilização não parece, portanto, constituir a alternativa, tanto mais que a espécie humana deve estar sempre em guarda perante aquele “punhado de tratantes” que, sob o pretexto de estabelecer a ordem da moral e dos bons costumes apenas tem como objetivo mantê-la sob o seu jugo. De facto, acrescenta Diderot, o rebelde, “desconfiai do que quer instaurar a ordem. Ordenar é sempre tornar-se senhor dos outros, constrangendo-os” (Ib., p. 184).

Perante estas ousadas considerações A, pouco convencido, volta a perguntar a B: “Que faremos então? retornaremos à natureza? ou submeter-nos-emos às leis?” (Ib., pp. 185-86). A resposta de B não é um apelo à subversão da ordem instituída, o que lhe custaria certamente mais uma vez a cárcere. O jovem Diderot já o tinha amargamente experimentado entre 23-25 de julho e 3 de novembro de 1749 no castelo de Vincennes após a publicação da Lettre sur les aveugles à l’usage de ceux qui voient (“Carta sobre os cegos para uso dos que vêem”) que a polícia da monarquia absoluta atribuiu ao autor, apesar da obra ter sido publicada anonimamente. Denis só foi libertado depois de assinar uma declaração em que se comprometia a rejeitar tudo o que pudesse ser contrário “à religião e aos bons costumes” (Diderot, Turim, 1980, p. 61). Prudentemente o organizador da Encyclopédie opta pela moderação, por uma postura que poderíamos designar atualmente como ‘reformista’: “Falaremos contra as leis insensatas até que as reformem; e, esperando, submeter-nos-emos a estas. Quem pela sua autoridade privada infringe uma lei má autoriza todos os outros a infringir as boas. Há menos inconvenientes em sermos loucos com os loucos, do que em sermos sábios isoladamente” (Diderot, Paris, 1972, p. 82).

Não se pense, no entanto, que a postura política de Diderot é tão prudente e cautelosa como parece inferir-se desta passagem do Supplément. No artigo ‘Citoyen’ da Enciclopédia, Denis defende que “é verdade para o governo em geral, o que é verdade para a vida animal: cada passo para a vida é um passo para morte. O melhor governo não é o que é imortal, mas o que dura mais tempo e que desfruta de uma existência mais tranquila” (Diderot, I, Milão, 1966, p. 55). Denis morre com uma apoplexia em 30 de julho de 1784, mas a História dará razão à sua tese sobre a efemeridade dos governos. Em 14 de julho de 1789 cai a Bastilha, a masmorra odiosa de um regime absolutista secular que se julgava eterno, iniciando-se um processo revolucionário que marcaria a Europa ocidental e que esteve na origem da formação do mundo moderno. Que melhor antecipação deste grande evento do que estas palavras escritas por Denis, le philosophe, em abril de 1771, à princesa Dashkow quando ainda pensava provavelmente cativar as elites aristocráticas europeias para o seu projeto iluminista de reformas sociais e políticas: “Todos os séculos têm o espírito que os caracteriza. O espírito do nosso parece ser o da liberdade” (Diderot, Turim, 1980, p. 55).

 Bibliografia

Diderot, Denis – Le neveu de Rameau, Paris, 1967
Diderot, Denis – Supplément au voyage de Bougainville, Garnier-Flammarion, Paris, 1972.
Diderot, Denis – Scritti Politici, UTET, Turim, 1980.
Enciclopedia o Dizionario Ragionato delle Scienze, delle Arti e dei Mestieri, I-II, Milão, Feltrinelli, 1966.
Hazard, Paul – O Pensamento Europeu no Século XVIII, II, Presença, Lisboa, 1974.