Artigo:Dejà vu

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Dejà vu

Friedrich Hayek, ideólogo do neoliberalismo no seu livro A ‘Constituição da Liberdade’ (1960) defende que “o único grande resultado” de uma política de tributação progressiva “foi a limitação severa dos rendimentos que poderiam ser obtidos pelos mais bem-sucedidos, gratificando assim a inveja dos mais pobres”.  Considera ainda que a introdução da progressividade não beneficia os menos favorecidos, mas “apenas a classe operária e os estratos inferiores da classe média”, já que “a receita gerada pelas taxas elevadas sobre os grandes rendimentos é tão pequena, em comparação com a receita total, que não faz qualquer diferença na carga suportada pelos outros” (Lisboa, Edições 70, p. 367). Com uma argumentação semelhante, Milton Friedman, no livro ‘Capitalismo e Liberdade’ (1ª edição1962) preconiza um imposto único sobre o rendimento de 23,5%, pois as taxas progressivas tornam “mais desigual a distribuição antes dos impostos (…) desencorajando a entrada de atividades mais tributadas” (Lisboa, Actual, 2014, p. 224).

Este tipo de argumentação de Hayek é completamente falaciosa. É precisamente por beneficiar “a classe operária e os estratos inferiores da classe média”, ou seja, precisamente as classes que sustentam a maior parte do consumo na sociedade que a tributação progressiva acaba também por beneficiar os mais pobres no sentido em que gera maior procura que, por sua vez, cria mais empregos, maior produção, e consequentemente, um aumento do rendimento disponível de que os menos favorecidos acabam por beneficiar em última instância. Por sua vez, a instauração de uma ‘flat tax’ sobre o rendimento, para além de iníqua em termos sociais – é injusto que rendimentos muito diferentes sejam tributados à mesma taxa –, acaba apenas por beneficiar os mais ricos, pois a tributação direta não apenas é insuficiente para sustentar as políticas sociais, a que tanto Friedman como Hayek se opõem, mas também tem que ser complementada, para evitar a quebra significativa das receitas fiscais, por uma bateria de impostos indiretos que pesam em grande parte sobre os estratos médios e menos favorecidos da população, a não ser que se queira instaurar um Estado sem funções sociais  à imagem do liberalismo do século XIX. A flat tax significa então que bastará tornar-se rico para que se deixe praticamente de pagar impostos.

Neste sentido, não tem nenhuma originalidade a proposta de criação de uma taxa única de 15% sobre o rendimento das pessoas singulares da Iniciativa Liberal, precedida por um regime transitório em que são aplicadas duas taxas, uma de 15% que tributa os rendimentos até aos 30 mil euros e outra de 28% sobre os rendimentos acima deste patamar. Nem este ‘regime transitório’ se pode considerar uma ideia original, já que foi grosso modo a proposta de reforma tributária do partido de extrema-direita italiana, A Liga, do ex-primeiro ministro Matteo Salvini.  Para o partido de Cotrim Figueiredo, as suas duas taxas teriam apenas um impacto de 2 000 milhões de euros nas receitas do Estado, o que é completamente falso, já que os contribuintes que pagam as taxas médias mais altas, entre 100 000 e 250 000 euros, são responsáveis por 75% da receita fiscal, cerca de 5 166 milhões de euros. Se a este valor acrescentarmos o que incide sobre os contribuintes que estão situados no escalão mais elevado, acima de 250 000 euros, a receita fiscal atingirá cerca de 5 800 milhões de euros. Estes valores perder-se-ão no caso desta dupla taxação e, por maioria de razão, da instauração de um imposto único sobre o rendimento, beneficiando claramente os mais favorecidos em detrimento dos demais. Poderemos então concluir que não são os impostos diretos altos ou baixos que contribuem para a prosperidade económica, mas o modo como são repartidos pelos diversos escalões de rendimento, pelo que a tributação progressiva não é apenas socialmente mais justa, mas também mais eficaz em termos económicos do que a ‘flat tax’, gerando mais rendimento e riqueza repartidos por toda a sociedade.  

Em contrapartida, o liberal, Mario Monti, ex-Primeiro Ministro italiano, defende “os impostos como instrumento da vida coletiva e da coesão social” e a “progressividade e impostos sobre o património para evitar privilégios injustos e concentrações do controlo; forte tutela da concorrência para abrir o caminho a novas empresas, evitar rendas, favorecer quem consome. É a batalha das ideias a que somos chamados” (‘L’Espresso’, Roma, 27.12. 2021, p. 35). Tudo aponta para que o liberalismo não se esgote, felizmente, na Iniciativa Liberal de Cotrim Figueiredo que não é mais do que uma discípula tardia, serôdia, do neoliberalismo conservador e reacionário de Friedman e Hayek, ambos defensores da ditadura militar de Pinochet e do seu programa económico de capitalismo selvagem. Esperemos também que o novo Presidente da República chilena possa iniciar a construção de um novo modelo económico socialmente mais justo.  

Joaquim Jorge Veiguinha