Da crise das matérias-primas ao ‘warfare’
As últimas semanas têm sido férteis em (tristes) acontecimentos. O primeiro, mais mediático, é o aumento dos preços da energia, petróleo e gás natural, e dos cereais, como consequência da invasão russa da Ucrânia e das sanções aplicadas pelos Estados Unidos e a União Europeia à potência invasora. Em 9 de Maio, o preço do barril Brent do ouro negro atingiu 120 dólares, embora no princípio da semana tenha sido avaliado em 130 dólares, com as inevitáveis consequências sobre o aumento do preço dos combustíveis. Por sua vez, o gás natural no mercado spot fixou-se no seu fecho, na passada segunda-feira, em 256 euros o Megawatt hora (MWh), depois de ter alcançado um máximo de 345 euros MWh. O preço dos cereais, de que a Rússia e a Ucrânia são grandes produtores, também disparou, de que se destacou o trigo que foi cotado a 450 euros por tonelada nos mercados internacionais quando há dois anos se comercializava a 120 dólares. A forte dependência energética da União Europeia relativamente ao petróleo e sobretudo ao gás russo, bem como a escassez internacional de cereais têm como principal efeito o aumento da inflação, que na UE, em média, já supera os 5%, bem como a redução das taxas de crescimento previstas num cenário que se aproxima a passos largos do fenómeno da estagflação que caracterizou os dois choques petrolíferos de 1973 e 1979. É de revelar ainda que tal fenómeno contribuiu para desencadear a ofensiva conservadora da década de 80 do século passado contra o Estado social e as políticas sociais redistributivas do pós-II Guerra Mundial na Europa Ocidental.
Analisando mais profundamente a atual situação política internacional é necessário penetrar para além das aparências para descobrir o que está realmente em jogo que é deveras preocupante. A preocupação dos media com a crise energética e das matérias-primas tem colocado num plano relativamente secundário o que consideramos ser a questão política central do momento: a defesa do aumento das despesas militares no orçamento dos países que integram a União Europeia (UE). A NATO encontra-se na ‘vanguarda’ desta exigência, estabelecendo uma meta mínima de 2% do PIB até 2024 – Portugal gasta atualmente 1,6% –, tomando como exemplo a Alemanha que afirmou pretender atingir este objetivo após a invasão da Ucrânia pela Rússia. Numa reunião informal dos máximos dirigentes da UE não restaram dúvidas a este respeito: “Gastar mais dinheiro com as capacidades militares (…), investir nas inovações tecnológicas de defesa (…), criar um hub de inovação na defesa (…), reduzir as dependências tecnológicas industriais” (DN, 10.03.2022).
Esta projeto tecnocrático militarista tem que ser sublinhado, pois tudo aponta que, a pretexto de uma ameaça militar russa contra o alegado ‘mundo livre’, se lance a primeira pedra para a construção de um warfare state sob os escombros do Estado de bem-estar ou welfare state na versão anglo-saxónica, projeto acalentado pelos sucessores de Margaret Thatcher e Ronald Reagan e seus ideólogos, Milton Friedman e Friedrich Hayek, os quais, no entanto, não lhe conseguiram dar a machadada final, pois a relação de forças, pelo menos antes da implosão da ex-União Soviética, não lhes era ainda completamente favorável. Este militarismo que se considera a si próprio como ‘defensivo’, baseia a sua argumentação no expansionismo russo cuja primeira etapa teria sido a invasão da Ucrânia, mas que não hesitaria em invadir outros países da Europa ocidental que ameaçassem os seus interesses. Esquece-se, no entanto, de definir quais são os ‘interesses’ da Rússia que, no fundo, se concentram na obtenção de garantias explícitas de que a Ucrânia de Zelenskii manterá o seu estatuto de neutralidade, concordando em não aderir à NATO. Uma coisa é certa: desde 2014, o regime ucraniano não se tem cansado de defender a sua integração na NATO com o beneplácito dos Estados Unidos e também da própria União Europeia. Prova disso é que, segundo o major-general Carlos Branco, investigador da IPRI-Nova, em junho, julho e setembro de 2021 foram realizados exercícios da NATO em território ucraniano onde participaram cerca de 23 000 soldados (Jornal Económico, 11.03.2022). Mais recentemente, os norte-americanos decidiram enviar para a Ucrânia aviões MIG-29 através da Polónia e a NATO realizar exercícios militares na Estónia, país que, juntamente com a Letónia e a Lituânia, ocupadas pelo exército soviético na II Guerra Mundial, são fortemente hostis à Rússia. Tal não justifica nem legitima a invasão russa da Ucrânia, mas também que esta aceite às suas portas o possível estacionamento de armas nucleares, como os EUA não o aceitaram em Cuba em 1962. O mundo não está dividido em anjos ocidentais e demónios orientais ou euroasiáticos, e vice-versa.
Além do mais, o modelo social europeu ou o que dele resta será definitivamente posto em causa se o warfare acabar por triunfar. Ainda para mais no contexto de um brutal ritmo de redução das dívidas públicas para 60% do PIB em 20 anos previsto pelo tratado orçamental da UE, o que tornará praticamente inviável o já débil Estado social português com uma dívida atual de quase 130% do PIB, pois implicará excedentes orçamentais de cerca de 3% por ano. Em suma, é “a Europa connosco”: depois de nos ter transformado com o nosso consentimento num país de trânsito de ‘gafanhotos’ turísticos de massa, podem ainda levar-nos o pouco que nos resta da herança igualitária do 25 de Abril de 1974. Eis as democracias liberais europeias no máximo do seu esplendor.
Joaquim Jorge Veiguinha